Há muitos e muitos anos, corria o ano da graça de 1998, debatia-se acesamente, neste pacato país virado para o mar, se a interrupção voluntária da gravidez realizada até às primeiras dez semanas de gravidez, e por opção da mulher, deveria ser penalizada (ie, constituir crime e ser punida) ou não. Eu, menor de idade sem grande conhecimento da vida, achava aquilo tudo um absurdo e era totalmente contra a despenalização. Porquê? Porque a minha tenra idade levava-me a acreditar que só engravidava quem queria, que a vida humana era sagrada e todos os seres humanos tinham o direito à vida desde a sua conceção. A minha opinião era desprovida de sentido prático – acho que temia apenas que todas as mulheres desatassem a interromper voluntariamente as suas gravidezes, o que me parecia totalmente contra natura. Nesse ano, a pergunta acabaria por ir a referendo e o não à despenalização ganhou com uma margem mínima – 51%. Os portugueses estavam divididos.
Muitos e muitos anos depois, corria o ano da graça de 2004, já eu maior de idade e a viver sozinha, o telefone tocou às 2h da manhã. Era uma amiga que conhecia há pouco, mas que sabia que confiava bastante em mim:
- Preciso de ajuda.
- Que se passa?
- Preciso mesmo de ajuda. Por favor anda buscar-me e já te explico tudo.Saí a correr. Peguei nela, que tremia de frio ou medo, não sei. A história era triste, muito triste: mesmo a tomar a pílula, um antibiótico tinha “anulado” o efeito do contracetivo e ela tinha engravidado do namorado. Só que, perante a notícia, o namorado reagiu mal e pediu-lhe que abortasse, pois eram novos e não tinham condições para sustentar uma criança. Ela acabou por viajar até Espanha, sozinha, onde, numa clínica habilitada a realizar IVG, se submeteu a todos os procedimentos. Contou-me tudo o que passou, tudo o que teve que pagar sozinha, tudo o que chorou e a dor que ainda sentia. E contou que, depois disso, a relação nunca mais ficou igual. Nesse dia, tinham tido uma discussão mais feia que a levou a sair de casa. Ouvi a história e fiquei revoltada por ela, pelo namorado, pela forma como teve que viajar clandestinamente até Espanha, pelo dinheiro que lhe cobraram, pela forma como o assunto tinha que ser tabu, porque era tão mal visto, por tudo… Ela estava a sofrer e eu sofri também com ela. Naquele dia, parte de mim mudou.
Três anos depois, em fevereiro, houve novo referendo, desta feita com 59% dos votos (o meu incluído) a favor da despenalização. Apesar de o número de votos não ter sido suficiente para tornar o referendo vinculativo, a lei acabou por ser aprovada, estipulando-se um período de reflexão de três dias entre a consulta e o procedimento, proporcionando-se à mulher acompanhamento psicológico, para evitar decisões precipitadas ou pouco ponderadas.
Hoje lembrei-me deste assunto, porque em conversa com a minha irmã falávamos duma amiga dela que tinha sido mãe aos 18 anos.. Dizia-me a minha irmã:
- …Conclusão: neste momento, a mãe da criança é a avó, porque a mãe está a estudar e nunca está com a filha.
- E o pai?
- Não sei, mas tenho ideia que não estuda nem trabalha.
- Achas que deviam ter tido o filho, assim nessas condições?
- É difícil dizer. Um dia até podem dizer que valeu tudo a pena. Mas, sinceramente, acho que foi uma irresponsabilidade terem a criança. Se não tinham condições para a ter, foi um ato de egoísmo colocar uma criança no mundo. Eu não conseguia ter.Olhei para a minha irmã e fiquei ali uns segundos a pensar naquilo. Não sei se é por a minha irmã ter feito 18 anos num país que já tinha a despenalização da IVG aprovada, mas o que é certo é que a minha "pequenina" é muito mais prática do que eu era até àquele telefonema, tantos tantos anos atrás. Talvez sem esse telefonema, esta conversa fosse hoje diferente e eu tivesse discutido acesamente a opinião dela. Hoje em dia, no entanto, a opinião dela, que é muito mais liberal que a minha opinião há dez anos atrás, coincide. Acredito que é uma decisão que apenas faz parte da decisão ponderada de cada mulher. Uma criança não é um brinquedo que se possa “experimentar” e tem que ser muito desejada. Se esta maneira de ver as coisas entra em conflito com a minha religião? Não sei, mas gosto de acreditar que as mulheres que lutam por uma vida melhor merecem tanto quanto as outras um lugar no céu. Porque, no fundo, é disso que se trata – ponderar quando há realmente condições para se ter uma criança. Se hoje em dia defendo com unhas e dentes a decisão de alguém optar por realizar uma IVG? Não defendo nem critico. Defendo que é opção de cada mulher/casal, que devem poder fazê-lo em qualquer hospital de forma acessível e sem clandestinidade ou olhares que julgam, porque saberão sempre ponderar os prós e contras. A verdade é que nunca conseguimos realmente opinar até nos calhar a nós uma decisão deste calibre, não é?... O que acham do tema?