segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Vamos lá discutir a questão dos funcionários públicos

Ok, eu estava a pedi-las. Mas a verdade é que ando outra vez tão envolvida no mundo da maternidade que até me soube bem sair desse registo e entrar em temas mais sensíveis da atualidade. Por isso, quando, no último post, falei da questão da greve dos funcionários públicos estava ciente que não estaria a agradar a todos. E dei a minha opinião quanto ao alegado "ritmo alucinante" dos mesmos sabendo que podia ferir algumas suscetibilidades. De qualquer dos modos, confesso que não estava à espera de ter tanto feedback, tantos comentários negativos, tantas críticas e de gerar tanta polémica. Alguns comentários foram entretanto removidos pelos autores (eu não removo nada a não ser que seja mal educado), mas podiam ter deixado, caros comentadores, porque é das críticas que também se faz o diálogo.

Vamos lá aprofundar o assunto, então. Antes de mais, a quem comentou dizendo que eu, basicamente, não conhecia a realidade e estava de barriga cheia a falar, deixem que vos diga que estão a fazer o mesmo de que me acusam. Não fazem ideia se conheço (ou não) a realidade e se estou (ou não) de barriga cheia.

Assim, indo por partes: primeiro, lamento desiludir, mas até conheço a realidade. Estive um ano a trabalhar em funções equiparadas e, sem querer entrar em muitos pormenores, até tenho muita gente próxima que é funcionário público.

Por outro lado, não estou (com muita pena minha!) de barriga cheia a falar (se afastarmos o sentido literal da expressão, claro). Trabalho há praticamente 10 anos e a evolução do meu salário tem sido muito, muito mais lenta do que gostaria. Trabalho cerca de 10 horas por dia. Com dias (muitos) em que estou fechada das 9h30 às 22h sem sair a não ser para almoçar. Recebo apenas 12 meses. Não tenho direito a subsídios. Como passo recibos verdes, de 3 em 3 meses tenho que entregar o malfadado IVA ao Estado. Se ficar doente, não tenho direito a ficar de "baixa". Perguntam-me muitas vezes se vou trabalhar até ao dia do parto ou se vou para casa antes. A resposta é simples: tal como aconteceu da outra vez, trabalharei até ao dia "D", pois não há sequer alternativa. Perguntam-me também se tenho direito a horário reduzido por dar de mamar. Não tenho. Se quero dar de mamar, tenho que conciliar o meu horário com os horários do bebé, tal como fiz da outra vez, e jogar com as viagens alucinantes de carro a casa, para ir e voltar em meia hora, e com a máquina de tirar leite. Perguntam-me também se consigo sair cedo para estar com a minha filha. Não consigo. Nunca estou em casa antes das 20h. E com sorte. Por isso, conciliar esta vida com infantários seria impensável, para já. O meu telefone profissional recebe emails e chamadas até ao fim-de-semana. Tenho que estar sempre contactável. E tenho ainda a pressão da rentabilidade e da eficiência a pairar constantemente. Tenho que ser lucrativa. Sempre. Lucro, lucro, lucro. Se não, torno-me dispensável, por melhor que seja tecnicamente.

Sei que o conceito de "ritmo alucinante" pode variar de pessoa para pessoa. Sei que, para alguns, esta vida que descrevo até pode ser uma vida calma. Para os médicos que fazem urgências, com certeza que sou privilegiada por não fazer diretas. Para os juizes e professores que andam continuamente com a casa atrás das costas conforme são colocados, também serei afortunada porque tenho estabilidade geográfica. Para os enfermeiros que não são colocados, o facto de eu ter um trabalho já será algo a invejar. Cada um terá as suas adversidades e a vida do próximo pode parecer sempre mais calma que a nossa, porque a vemos... ao longe, não é a nossa.

Se acredito, ainda assim, que a minha vida seja mais alucinante que a vida da maioria dos funcionários públicos? Acredito. Desculpem, mas acredito. Na experiência que tive, descobri o doce sabor de ter um "patrão" desconhecido. Tinha uma pessoa acima de mim, naturalmente, mas não havia o tal "patrão" por perto. O "patrão" era uma entidade abstrata, quase desconhecida, que vivia no topo da hierarquia, a anos-luz de nós. Descobri também o sabor de não ter telemóvel profissional, com emails a caírem e com telefonemas a toda a hora. Descobri o sabor de ter um edifício que fechava às 20h e de ter um segurança que me ia chamar às 19h45, porque estava a fechar tudo. Percebi que, se quisesse ter um filho, teria direito a baixa se fosse preciso, a licença de maternidade e também a horário reduzido para amamentar. Percebi que não havia a mesma pressão dos objetivos e da faturação. Percebi que não havia tanta pressão na avaliação. Descobri o doce sabor de ter estabilidade na carreira e contrato sem termo, sem obrigação de passar recibos verdes. Descobri o bom que é viver sem medo de me tornar dispensável amanhã,

Mas a minha experiência também serviu para ouvir as queixas de quem me rodeava. E eram muitas: os cortes. A dificuldade na progressão de carreira. O congelamento de salários. As más condições. O aumento das 35 horas para as 40 horas sem aumento de salários foi a gota de água. Imagino que sim. No entanto, esta situação foi recentemente revertida, certo? Voltarão às 35 horas. Está garantido. Daí não entender tanta revolta agora. Não conseguiram o que queriam?... O meu comentário à entrevista que partilhei teve uma dupla intenção: primeiro, manifestar a minha estranheza perante uma greve de quem teve o que pediu. Mesmo que a medida demore 3 meses a ser implementada, está aí. Fez-se a vontade. E depois, quis também explicar que, de todos os argumentos que poderiam utilizar para justificar a greve, o argumento de uma vida com um ritmo alucinante parecia-me o mais difícil de convencer tendo em conta as horas atuais obrigatórias (40) e aquelas de que irão beneficiar em breve (35).

Não querendo alimentar a discórdia, acredito que acontece mais o oposto: quem é funcionário público não consegue imaginar o ritmo de quem vive a recibos verdes, a dar continuamente tudo por tudo e sempre com a vida em suspenso. Não imagina o que é fazer parte da "geração dos € 1000". Posso estar enganada, mas poucas vidas me parecem mais alucinantes que isso.

12 comentários:

  1. Concordo contigo do princípio ao fim do texto!

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  2. Pippa, antes de mais, parabéns pelo novo rebento :) quero acompanhar essa aventura - e como vou estar de licença daqui a 1 mês, espero conseguir!

    Li o teu post da FP e concordei, ainda que perceba que sem se saber pormenores da tua vida se possa duvidar da legitimidade. Mas não li comentários na altura, e a única coisa que me apraz dizer-te em jeito de 'consolação' é que 50% dos portugueses trabalham na FP. Assim, se não ofendes alguém directamente, ofendes com certeza alguém que lhes é próximo. Em curto: Estás lixada!!! Não se pode criticar nada que seja dado como adquirido em Portugal, é assim. Mesmo que trabalhes numa consultora 12-16 horas por dia, suando as estopinhas e - sim - ganhando bem. Vidas...

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  3. Concordo com tudo o que dizes.
    Mas acredito que, apesar de tudo, existem pessoas que preferem deixar de ser funcionários públicos e passar a viver de uma forma menos "garantida" e mais autónoma. O meu namorado despediu-se quando eu fiquei grávida pela primeira vez e tornou-se trabalhador independente. Férias ou doença são por conta própria, mas não há nada que o faça voltar a ter um chefe que não ele próprio. Muitas vezes, ser funcionário público dá cabo da nossa autoestima até ao limite. No entanto, ter os horários e a pressão que tens não se pode comparar, sem dúvida, a um trabalho das 9h00 às 18h00, com feriados e fins de semana dignos do nome.

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  4. Subscrevo cada palavra!

    Parabéns pelo baby (ainda não tinha manifestado a esse tão mais importante tema)

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  5. Pippa,

    Li o outro post mas decidi na altura não comentar porque já sabia o que aí vinha. E até me pareceram poucos comentários para o que esperava.
    Mas agora já sei porque é que engravidaste de novo. É porque queres ficar de barriga cheia :P

    Em relação ao tema vou dividir em pontos:

    1º Lá por uma pessoa nunca ter sido um bom jogador de futebol, isso significa que não possa ser um bom treinador de futebol? Resposta: José Mourinho. A mesma coisa em relação ao tema. Lá por uma pessoa nunca ter sido um funcionário público ou não trabalhar 12h por dia, significa que não pode criticar? Resposta: Era só o que faltava. Direito à opinião.

    2º Conheço muito bem a realidade do setor público e privado. Os problemas são basicamente os mesmos. Muitas horas extra sem serem pagas, congelamento de salários, condições de trabalho, etc... Sim, há uns felizardos que não sofrem disto nos 2 lados, mas não são esses que se queixam, ou melhor, iriam queixar-se se quisessem passar de 40h para 45h no privado, mesmo esses.

    3º Ninguém gosta que lhe aumentem as horas de trabalho sem lhe pagar mais. Mesmo uma pessoa que já receba €10.000 por mês, por exemplo. É humano. No entanto sou da opinião que as horas de trabalho deveriam ser iguais para todos, seja público ou privado. No público há algumas garantias que não há no privado e vice-versa, portanto seria justo que ambos tivessem o mesmo horário de trabalho, seja das 9-18 ou das 8h30-17h30.

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  6. Anónimo13:42

    Não sou funcionária pública, nem tão pouco "vivo" de recibos verdes, mas aplaudo o teu texto... de pé.

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  7. Anónimo16:32

    Clap, clap, clap!
    Tudo dito!

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  8. Anónimo12:39

    Pippa,
    Comentei o post anterior e peço desculpa se lhe pareci indelicada, não era minha intenção. Ainda assim, mantenho a minha posição: não se deve julgar ou comparar situações. Sou filha de uma funcionária pública e de um trabalhador de muitos anos do sector privado que hoje trabalha por conta própria e essa foi uma das coisas que aprendi e que mantenho sempre presente.
    Um beijinho,
    Inês.

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  9. Sabes que há milhares e milhares de funcionários públicos que recebem menos do que a geração dos €1000? :) Pensa em quem mantém os jardins públicos, as pessoas que recolhem o lixo, os auxiliares educativos em escolas, motoristas e outros condutores, funcionários de repartições públicas (ah pois!), professores contratados, etc, etc.
    Como alguém disse em cima, há vantagens no público e vantagens no privado. Não se deve é ser cego/a perante as desigualdades, e estas existem num sector e noutro. :)

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  10. Trabalho a recibos verdes por conta própria e já trabalhei na função pública. Vejo tanta competência/incompetência no privado como no público. Em vez de batermos nos que lutam por melhores condições e privilégios, devíamo-nos juntar para que o privado também nos proporcionasse melhores condições.
    Não posso concordar com o facto de aumentarem o número de horas de trabalho em 15% e ainda cortarem no vencimento seja no público seja no privado, sem que o trabalhador tenha o direito de se manifestar. Como sabemos há bons e maus trabalhadores, e os bons profissionais muitas vezes não são reconhecidos.

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  11. Anónimo03:05

    Este post já tem meses, mas ainda assim vou comentar...

    Sim, sou funcionária pública (embora numa carreira um pouco à parte).
    Trabalho há 20 anos e tenho 3 filhos em casa e já passei dos 40.
    Trabalho a 70km da casa, isso no Alentejo e por algumas estradas é o equivalente a 1h de viagem para lá e outra para cá (sem qualquer ajuda de custos).
    Acontece o mesmo com o meu marido, sendo que não temos familiares por perto, (para além da minha mãe que tem 87 anos) os miúdos ficam todo o dia por conta deles, o que já me valeu grandes sustos e viagens antecipadas com o coração muito apertadinho (Já tenho feito a viagem 4 vezes num dia).
    O normal é estar 10 horas fora de casa, mas em dias mais complicados, chego a estar 12 horas fora.
    Portanto se contou bem, somos 6 pessoas em casa (mais 1 gato e 1 cão) para quem tenho de cozinhar todos os dias e preparar o almoço do dia seguinte, mais a casa, mais os filhos, mais a minha mãe, mais..., mais..., chegue a que horas chegar (O meu marido está numa situação similar e ainda ocupa um lugar de chefia)
    Se o meu trabalho acaba quando saio de lá?? Não!! Nunca acaba, tenho sempre alguma coisa para fazer, fins de semana incluídos.
    Sou licenciada, ele tem mestrado. O meu ordenado?? A trabalhar há 20 anos, ganho pouco mais de 1000€ (e ele igual) e, como sabe, as carreiras estão congeladas. No meu caso desde 2004 que estou encalhada no mesmo escalão.
    35h?? 40??? Onde estão?? Contabilizo muito mais do que isso!!!
    Reposição de ordenados??? Quer saber a verdade?? Os 75% que supostamente já me foram repostos e dos quais a comunicação social tanto fala, no meu ordenado correspondem a quase 50€ negativos...

    Sinto-me sempre muito mal ao ver os FP a serem atacados a toda a hora por tudo e por nada e tantas vezes de forma tão injusta.

    Quem está no privado e se sente assim tão lesado, se calhar deveria era revoltar-se contra o patronado, que quanto a mim é o que faria mais sentido!

    Sem mágoas nem ressentimentos, que gosto muito de si! Foi apenas um desabafo de alguém que não gostou do que leu por não retratar a sua realidade.
    Já há muito que não passava por aqui e não sabia que tinha tido outro bebé, para o qual desejo as maiores felicidades.

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  12. Anónimo03:16

    Só para acrescentar que, embora FP, para nascimento do meu último bebé fui diretamente do meu local de trabalho, levada por uma colega, para a maternidade! ;)

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