quarta-feira, 7 de maio de 2014

Pudesse eu escrever sem palavras

Primeiro fui eu a festejar o meu aniversário em simultâneo com o dia do pai. A celebração de todos os pais do mundo, ali encaixadinhos no mesmo dia, enquanto eu celebrava só o meu, ou tentava celebrá-lo, ali paredes-meias com a celebração do meu próprio dia. A seguir, foi a vez da minha irmã. Depois a minha mãe. Depois foi também o dia das mães. O dia de todas as mães do mundo, tantas, tantas mães a serem celebradas, enquanto eu fazia por festejar a minha, só a minha. Depois foi ainda o aniversário do meu pai. Todos os anos é assim - despachamos os aniversários todos em três tempos, mal começa a chegar a Primavera. "Parabéns, parabéns, parabéns, parabéns". Em dois meses, é um corrupio de parabéns. E de "feliz dia, feliz dia". O problema é que chega um ponto em que parece que as palavras ficam gastas. E isto voltou a acontecer este ano, em que todas as datas pareciam mais especiais que nunca. Logo este ano, em que os números estavam todos tão redondos e tão imponentes como a minha barriga. Chegou um ponto e as palavras tornaram-se repetitivas e sem significado. Alguém chegou lá, à fonte das palavras, abriu as palavras e esvaziou-as todas, tirou-lhes todo o conteúdo. E queria dizê-las - "parabéns, maninha, parabéns, mamã, parabéns, papá, sabes que significas isto para mim.... sabes o quanto gosto de ti... sabes que..." -, mas as palavras já não eram nada, eram só palavras. Tornaram-se ocas. Decorativas. Tornaram-se iguais às palavras que se veem em todas as esquinas, em todos os cantos. E assim se foram mantendo.

Palavras, tantas palavras e eu sem nada bonito para dizer a cada uma das pessoas mais importantes da minha vida. As palavras subitamente deixaram de der especiais, de ser únicas. Então não as disse. Não as digo. Não as dou. Queria pegar em todas as palavras bonitas, juntá-las, por umas vírgulas e uns pontos finais catitas, mas foi ficando apenas a intenção. Queria pegar em todas as palavras bonitas e fazer magia, conseguir dizer o que vai cá dentro, queria, quero conseguir explicar que sempre que penso no real significado que a minha irmã, e que a minha mãe, e que o meu pai têm para mim, sinto um calor que me preenche e me deixa os olhos húmidos. Quero pegar em todas as palavras bonitas e dar-lhes este calor aconchegante, esta emoção, estes sentimentos que vão cá dentro.

Mas todas as fotografias de filhos com pais e mães, todas as legendas “amo-te muito”, “és o melhor pai/ és a melhor mãe” bloquearam-me. Fiquei bloqueada. Afinal o amor está em todo o lado. O amor é omnipresente. O amor é banal. E todos os pais e mães são os melhores. Mas como é que é possível se “melhor” é adjetivo comparativo de superioridade de “bom”, como aprendi na escola? Não é suposto haver só um melhor? Afinal são todos comparativamente superiores? As fotografias e o amor bloqueiam-me. O amor é comum. O meu amor não é maior que nenhum. Dias do pai. Dias da mãe. Melhores irmãos do mundo. E as minhas palavras não valem nada. Nada. Nada… Sou só mais uma neste mar de amor, e fotografias felizes, e “és o melhor pai do mundo”, e “és a melhor mãe do mundo”,e “és a melhor irmã do mundo”, e “amo-te muito", “amo-te muito”, “amo-te tanto”,“amo-vos tanto”.

De repente reparo que eu, que até gostava de conjugar verbos na escola, e tinha português, e inglês, e francês, e alemão, e latim, nunca conjugo com vocês o verbo amar. Desculpem-me. “Tanto estudo de línguas e sais assim, minha filha, sem conjugar o que seria mais importante”. Nunca me disseram isto, mas podiam dizer. Têm razão. Mas faço-o apenas porque sinto, e sempre senti, que este verbo não é bem meu, não é especial. Está em todos os poemas, e livros, e até nos telefonemas - “Amo-te muito, até amanhã”. Eu não vos amo muito, até amanhã. O que sinto tem um ponto final a seguir. É absoluto. É total. E tira-me o ar. Deixa-me sem falar. O que sinto é esta vontade de vos abraçar, a cada um de vocês, apertar-vos com força, em silêncio, e guardar-vos para sempre. O que sinto é esta certeza que não há adjetivos comparativos de superioridade que vos cheguem aos calcanhares, porque nada se vos compara. Não há conjugações para vocês, porque vocês nem sequer são verbo.

E mais uma vez escrevi, escrevi, escrevi para nada. Não admira que as palavras já não valham nada, agora têm todos a mania que escrevem, olhem para este texto, por exemplo. Mas o que dizer a quem é incomparável e não conjugável? Nada, certo? Então calemo-nos. Tenho esperança que tenham alguma noção de tudo o que vai cá dentro. E percebam tudo aquilo que as palavras não conseguem dizer. Parabéns a cada um de vocês. Por cada data redonda que celebraram. E por tudo o resto (especialmente por tudo o resto) que as palavras – banais, gastas, usadas –, e os verbos –conjugados até à exaustão –, e os adjetivos – comparativos, quando vocês não têm comparação – não conseguem dizer. Parabéns, maninha. Parabéns, mamã. Parabéns, papá.

8 comentários:

  1. Anónimo21:52

    Gostei. :-)

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  2. Adorei o texto, está maravilhoso!!

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  3. Pelo título do texto cheguei a pensar que a Constança tinha nascido! :) De qualquer das formas, adorei o post. A Pippa expressa-se muitíssimo bem, com o seu texto disse tudo o que nele diz que não é capaz de dizer!

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  4. Parabéns a ti Pippa, por escreveres divinalmente. Adorei! mais uma vez!

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  5. Parabéns a ti Pippa, por escreveres divinalmente. Adorei! mais uma vez!

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  6. Tambem nunca nunca vos digo q vos amo muito e de alguma forma irritam-me pessoas q dizem isso! Parece-me tão banal mas nunca encontro as palavras certas q equiparem esse sentimento! Não sabia q tínhamos este traço em comum! Acabei de constatar q somos hipsters do amor :p

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  7. Sem palavras :)

    Bem haja!

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  8. Acho que mesmo sem palavras vais ficar daqui a uns dias ;)

    www.prontaevestida.com

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