quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Coisa estranha, isto de ser filha

O meu pai é uma pessoa muito intensa.

Pensei muito antes de escolher a palavra que o descrevesse melhor, mas acho que esta assenta como uma luva: "intenso". O meu pai é intenso. Com tudo o que tem de bom. Muito bom. E com tudo o que tem de... menos bom.

O meu pai é tão intenso que dizer as coisas uma vez não chega. Gosta de as dizer outra vez. E outra vez, não vá eu não ter ouvido da primeira. Da segunda. Ou da terceira vez.
- Não te esqueças de levar o carro à revisão!
- É verdade: tens que levar o carro à revisão, vê se te lembras.
- Já levaste o carro à revisão?
- .....
- Chega! Já sei...
(E protesto)

O meu pai é tão intenso que gosta de repetir o meu nome, quando fala comigo. Repete muito e eu sinto que o meu nome se gasta quando é tão repetido. E agora repete também o nome da minha filha.
- Constança?
- Constança!
- Constaaança.
- ....
- Ela não te vai responder. Não sei se reparaste, mas ainda não fala.
(E protesto)

O meu pai é tão intenso que quer organizar os meus fins-de-semana. Assim, preferencialmente, os meus fins-de-semana incluirão sempre uma noite em casa dos meus pais. Ou um jantar. Ou um almoço. Ou tudo. Sim, de preferência, tudo: jantar, dormir, almoçar, jantar, dormir outra vez.
- Têm planos para sábado? Podiam vir cá a casa jantar.
- O que fazem domingo? Não querem ir lá almoçar?
- No próximo fim-de-semana venham até cá...
- ...
(E protesto)

O meu pai é intenso. E muito presente. Gesticula. Toca-me nos braços enquanto fala. E toca-me outra vez, quando acha que estou distraída. (E eu protesto) Se estamos a andar e a conversar, para nos momentos mais altos da conversa. (E eu protesto) Quer saber de tudo sobre mim. Falamos todos os dias desde sempre. Mesmo depois de, aos 18 anos, eu ter saído de casa para ir para a faculdade, e ter ido viver sozinha. Falamos todos os dias, com a intensidade do meu pai e com os meus protestos.

Há dias, no entanto, em casa, estávamos os três no chão a brincar, olhei para o lado e vi tudo repetido. Vi-o a pegar em mim ao colo. Vi-o a rir-se com ar derretido, a olhar para mim como sempre olhava, quando era mais nova. A rir-se com ar derretido e sem sequer disfarçar. Vi aquele olhar de amor, de amor tão puro, sem "mas", sem "se"s. Vi aquele sentimento de proteção. Vi aquela intensidade que só um pai sente por um filho. Olhei para ali e vi-me, na minha filha. Olhei para ali e, nele, vi o meu pai. Vi-nos a nós. E fiquei esmagada pelo sentimento de culpa.

E pedi-lhe desculpa por todas as vezes que protestei. E pedi-lhe desculpa por, no meio de tantas palavras a mais, eu dizer sempre tantas palavras a menos. Pedi-lhe tanta desculpa. Mas, como sempre, não pedi desculpa ao telefone. Nem ao vivo. Pedi desculpa dentro de mim, onde vivem este 32 anos de memórias, de pai e filha. E agora, como a escrever ninguém olha para nós e nos vê o sentimento de culpa a encher-nos os olhos, peço desculpa por palavras. Escrevo o que não digo. E onde sei que não vai ler. Coisa estranha, isto de ser filha. Tanto para gostar e tão pouco para dizer.

6 comentários:

  1. E pronto...
    Já me deixas-te com a lágrima no olho... E ainda por cima estou no trabalho, ao pé de muita gente...
    Para começar eu também tenho uma Constança... Mas infelizmente já não tenho o meu pai para ver babar dessa maneira com os netos... Por isso lá em casa apenas falamos sobre como seria... Ele que adorava meninas, mas que só teve 2 rapazes, agora de repente ter 2 netas mais velhas (uma com ano e meio, e outra a fazer um aninho), e ainda mais de repente ter a nossa Constança, e o nosso pequenino, que também foi o primeiro menino desde o nascimento do meu irmão (há 30 anos atrás...)...
    Aproveita a deixa e pede-lhe mesmo desculpa... E dá-lhe um grande beijo e um abraço forte... Há coisas que não se podem deixar por dizer/fazer, sob pena de nunca mais as poderes fazer...
    Acredita, que eu aprendi isso da pior forma...

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  2. Que texto genial. Parabéns. E o meu pai também igual... "intenso". E agora como avô ainda mais "intenso" é... e eu adoro, e a cada dia que passa dou mais e mais valor...

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  3. Também me deixas-te com a lágrima no canto do olho! Palavras tão belas!

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  4. Anónimo19:03

    Revele todo teu amor em vida. Não deixe para amargar palavras que gostaria de ter dito, eu disse tudo que podia, tudo que sentia ao meu pai e agora que já não está aqui, ainda acho que disse pouco, que amei pouco que aproveitei pouco...

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  5. Anónimo07:05

    Diz-lhe!!! :)

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