sexta-feira, 21 de março de 2025

A Doença

 No intervalo do blog não deixei de escrever. Continuei sempre a usar a escrita, fosse o Word do computador, fosse o Bloco de notas do telemóvel, como terapia - para organizar pensamentos, deitar frustrações cá para fora, planear, sonhar - ou simplesmente como diário ou forma de apontar ideias para futuros livros (que nunca viram a luz do dia). Hoje, partilho um conto cuja ideia nasceu um dia, um pouco em cru, e que se tudo correr bem, ainda virei desenvolver e fazer disto um livro. Espero que gostem. Foi inspirado no livro "A morte de Ivan Ilitch", de Tolstoi.

"A DOENÇA

António nunca soube ao certo o momento exato em que A doença o visitou. Mas lembra-se duma exaustão – primeiro subtil, depois crescente –, acompanhada por dores lancinantes que lhe atravessavam o corpo (e a alma) como punhais invisíveis. Primeiro, ignorou esta visita indesejada. Os anos em hospitais de campanha, nos confins de cidades bombardeadas e nas tendas improvisadas em zonas esquecidas do mundo tinham-no ensinado a suportar, a resistir, a continuar. Já havia escrito muito sobre o tema e todos sabiam como era resistente à dor e dedicado a ajudar os outros. Sim, fazia questão de partilhar o seu altruísmo e humanismo, dava entrevistas, escrevia nas redes sociais, era presença assídua nas redes sociais e nas televisões, e tinha até um podcast. Ninguém passava por ele sem ouvir falar da sua missão. Procurava ser uma inspiração para aqueles que o ouviam falar sobre a forma como dedicava a sua vida aos demais.

Mas A doença visitou-o e nunca mais saiu da sua vida. Os sintomas multiplicavam-se, dissolvendo-lhe a força, a paciência, o entendimento do outro. Tornou-se vítima daquilo que nunca pudera suportar nos outros: a lamúria, o apelo contínuo à comiseração. “A doença” era um tormento indizível, e ele fez dela sua cruz e sua identidade.

Os que o conheciam bem estranharam a metamorfose. António, que outrora era capaz de ouvir a dor alheia com redobrada atenção, agora atropelava qualquer conversa para impor a sua dor como tema central. Os amigos que antes admiravam sua abnegação agora viam-se obrigados a suportar monólogos infindáveis sobre seus sintomas misteriosos. Os diagnósticos falhavam. Os médicos que ele mesmo formara e orientara estavam perdidos. Não havia nome para o que o consumia, e esse facto torturava-lhe a mente, tanto quanto o corpo. Os exames não mostravam nada, todas as análises apresentavam valores normais. Mas o corpo dizia-lhe o contrário.

A sua escrita, outrora um clamor pela humanidade, tornou-se um grito desesperado por atenção. As redes sociais, antes repletas de relatos de coragem e sofrimento alheio, passaram a ser um mural de queixas e ataques velados às injustiças que sofria. Os que tentavam animá-lo recebiam respostas amargas. Ninguém era suficientemente empático. Ninguém compreendia a sua dor.

Nos relacionamentos amorosos, A Doença tornou-se uma sombra. Iniciava histórias com paixão intensa, mas em pouco tempo afastava-se, desdenhando da incapacidade das amantes em compreender a profundidade do seu sofrimento. Nenhuma era suficientemente inteligente, suficientemente sensível, suficientemente atenta ao que ele se tornara: a própria personificação do martírio.

Foi assim com a última namorada. Ela dera-lhe tudo. Durante meses, acompanhara-o, ouvira os seus desabafos intermináveis, cuidara dele quando a dor se tornava insuportável. Acreditava que o amor poderia curá-lo. E, no entanto, quanto mais se dedicava, mais ele se afastava. Começou a ser consumido pela soberba, a irritar-se com tudo, a desprezar todas as suas histórias e a menosprezar qualquer sofrimento demonstrado por ela, por ser naturalmente inferior ao seu. Ele via nela apenas uma presença incapaz de compreender a magnitude do seu sofrimento. Um dia, sem aviso, disse-lhe que não poderia continuar, porque tinham noções diferentes de justiça. Ela ficou em silêncio por um instante, depois fez-lhe a pergunta que nenhuma outra fizera: “Mas tu queres ser ajudado, António? Ou apenas adorado na tua miséria?” Ele não respondeu. Apenas virou o rosto. No dia seguinte, ela não voltou mais. E sofreu muito, porque o amava de verdade. Um sofrimento bastante elevado no barómetro da dor comum. Um sofrimento irrisório para os standards dA Doença.

As visitas, que no início eram frequentes, começaram a rarear. Vinham por obrigação, nunca por desejo genuíno de estar ao seu lado. As expressões de simpatia eram sempre as mesmas – “Como estás, António? Tens melhorado?” –, mas as respostas não interessavam. Enquanto António falava, as visitas procuravam disfarçar o cansaço, esperando apenas o momento certo para se levantar e ir embora. Alguns visitavam-no apenas para confirmar o declínio do outrora grandioso António, sentindo um misto de piedade e desconforto ao vê-lo reduzido à sua condição miserável. Outros, mais insensíveis, usavam a sua doença como uma lição moral interna: “Ao menos eu não estou assim”, pensavam, antes de voltarem às suas vidas. Ou questionavam, para si mesmos “Terá mesmo alguma coisa? As más-línguas dizem que só procura atenção”.

Até os antigos colegas que vinham consultá-lo pareciam irritados com a falta de respostas concretas. Um colega mais velho, que outrora o reverenciara, examinava-o maquinalmente, evitando o olhar de António. “Talvez seja algo psicossomático”, murmurava, enquanto pensava no tempo que perdia ali, quando poderia estar a tratar de um caso mais estimulante. “De qualquer forma, fizemos todos os exames possíveis”, dizia em voz alta, antes de sair apressado, sentindo um estranho alívio ao fechar a porta atrás de si.

A última visita de um dos seus antigos amigos foi quase cruel na sua hipocrisia. Sentou-se ao lado da cama, segurou a mão de António por alguns instantes, fingiu ouvir as suas queixas e, por fim, soltou um suspiro exagerado. “Tu tens de tentar reagir, António. Não podes deixar-te ir abaixo assim. Já pensaste que podes não ter realmente nada grave?” Mas enquanto dizia isso, pensava: “Ele era tão forte, tão determinado. Agora, tornou-se apenas isto? É quase embaraçoso.”

E assim, um a um, todos se foram afastando. Os amigos deixaram de o procurar, incapazes de suportar sua soberba e autocomiseração. Os colegas que antes o reverenciavam passaram a evitá-lo. As amantes não voltaram. O público, antes tocado pelas suas palavras, cansou-se do seu lamento incessante.

Restou-lhe apenas A doença.

Os dias tornaram-se longos, indistintos. O mundo que antes percorreu, as guerras que testemunhou, os rostos que salvou, tudo parecia um passado longínquo, irreal, cada vez mais mergulhado pelas dores dA Doença. António recordava-se dos momentos em que segurava mãos ensanguentadas, em que as vozes suplicantes de feridos e moribundos preenchiam as noites sem lua. Ele sempre se sentiu uma presença salvadora, um anjo na terra. Agora, reduzido a um corpo enfermo, deitado na escuridão do seu quarto, não passava de um eco patético daquilo que fora.

O telefone tocava cada vez menos. Os dias passavam lentos, os rostos sumiam. As poucas visitas vinham por obrigação, e ele as recebia com um misto de gratidão e ressentimento. Ele queria ser ouvido, mas ninguém queria ouvir.

Até que um dia, num raro momento de energia, António decidiu sair de casa. Dirigiu-se à livraria mais próxima e comprou todos os livros que escrevera, como se tentasse recuperar a grandeza de outrora. Com os vários volumes apertados contra o peito, orgulho ao ver as suas fotografias e o seu nome das capas, e vaidade por ter tanta obra publicada (“Nenhum dos meus amigos conseguiu isto! E, verdade seja dita, escrevo mesmo bem”), atravessou a rua, distraído. O carro surgiu veloz e, num instante, tudo terminou.

A notícia da sua morte espalhou-se rapidamente. Os amigos lamentaram com breves mensagens, os colegas recordaram-no com discursos contidos, e o público, que outrora se comovera com suas palavras, seguiu com a vida. As amantes receberam a notícia, junto dos seus novos companheiros, num misto de riso pela ironia da morte e uma voz interna que dizia “Mereceste”. Mas em público expressaram admiração pela mente brilhante e humanismo indubitável. Nos países que visitou, a notícia não chegou. Os livros que carregava nos braços? Ficaram espalhados pelo asfalto, manchados de sangue e poeira, enquanto as pessoas passavam apressadas, desviando o olhar. No fim do dia, alguns mendigos apanharam alguns para, com eles, fazer as suas camas. Outras folhas que voaram pela rua são hoje usadas para corrigir pernas de mesas instáveis, num Burger King perto de casa do António."


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