sexta-feira, 11 de julho de 2014

A rua ficou mais triste

A rua da casa dos meus pais ficou hoje mais triste. A rua ficou mais triste nem tanto por mim - que o via apenas casualmente, quando visitava os meus pais -, mas sim por todos os vizinhos, adultos ou crianças, com que ele se cruzava diariamente, cheio de energia e de sorriso contagiante. A rua ficou mais triste, a cidade perdeu um sorriso e o mundo daquela família ficou com certeza para sempre mais vazio.

Costuma-se dizer que a morte nos apanha sempre de surpresa. Só que, neste caso, nem apanhou. Neste caso, a morte escreveu-lhe uma carta com aviso de receção e deu-lhe tempo para se preparar, se é que é possível alguém preparar-se para a morte. Assim, por aquilo que me contaram, após ter sido detetada uma doença terminal, este homem de garra logo tratou de traçar alguns objetivos que queria ver cumpridos no tempo que lhe restava: queria ver a filha casada, o filho licenciado e queria ainda festejar o 50.º aniversário, dali a muitos meses. Os médicos diziam, em surdina, que dificilmente teria tantos meses de vida. De qualquer maneira, determinado a enfrentar aquele bicho terrível que lhe devorava o corpo e lhe retirava avidamente tempo de vida, a um ritmo feroz, quando foi comprar o fato com que pretendia ir ao casamento da filha, comentou na loja: "Este fato hei-de usar no casamento da minha filha e no meu funeral". A frase parecia vinda de alguém terrivelmente ciente do seu destino e conformado com o mesmo. Imagino que na loja terão feito um sorriso amarelo, ao ouvir tal frase, e minimizado a mesma. Imagino que terão respondido algo do estilo "oh com certeza que usará mais vezes, parece estar ótimo". E estava ótimo. O espírito mantinha-se desperto e fortalecido. Só que o corpo definhava face àquele bicho implacável. De qualquer maneira, os meses foram passando. E deu o braço à filha, no dia do casamento, até ao altar. O filho licenciou-se. E o dia do 50.º aniversário chegou. Nenhum médico tinha previsto tanto tempo de vida, nem no cenário mais otimista. Festejou o dia junto dos que lhe eram mais próximos. Abraçou quem quis. Beijou quem mais gostava. Não deixou palavras por dizer. No dia seguinte, voltou a vestir o fato que usou no casamento da filha. Tal como tinha previsto. E todas as senhoras que trabalhavam na loja se foram despedir dele, de coração apertado.

A rua da casa dos meus pais ficou mais triste. E eu fiquei com a certeza que há pessoas mesmo inspiradoras, a quem nem a morte assusta, e que têm um sorriso tão forte que conseguem sorrir até ao último dia. Sei que a morte vence sempre, no final. Mas gosto quando lhe dão luta e se riem perante a mesma. Porque inspiram-nos a viver. E a aproveitar cada dia ao máximo com mais afinco.

6 comentários:

  1. Desculpa a pergunta "estúpida", mas o senhor morreu mesmo no dia seguinte ao seu aniversário??

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  2. Engraçado como ainda hoje escrevi sobre as ruas que são nossas, sem o serem. De alguma forma também passam a ser nossas, as pessoas que lá moram. E há o nosso café, porque é ali ao lado de casa, sem que nunca lá tenhamos entrado... :)

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  3. Que história tão triste, mas tão bonita pelo exemplo que dá...há pessoas que conseguem ser inspiradoras até ao fim.

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  4. Anónimo07:33

    Que história inspiradora. Bus

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  5. Adorei, a história e a forma como foi contada. Essa pessoa deveras devia de ser especial!

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