quarta-feira, 22 de outubro de 2014

As pequenas coisas

Há muitos muitos anos, era uma tarde qualquer, dum dia qualquer, e ele disse-me, a seguir a um almoço igual a todos os outros, a mim, jovem adolescente: "Gostas? Se gostas, podes ficar com ele, é para ti". E eu olhei e pensei algo do estilo"gosto mais ou menos, mas é dado, por isso acho que quero", acenei que sim e fiquei com a medalha. "É para usares num colar", acrescentou. Era uma medalha oval, com uma cara duma jovem mulher desenhada. Por trás, tinha um ano - 1984 - e eu fiquei triste por não ser o meu ano de nascimento. Nem o dele. Nem o de ninguém que me lembrasse. A cara da jovem mulher também não era parecida comigo. "Afinal esta medalha não me diz nada", disse para mim mesma. Naquela tarde qualquer, daquele dia qualquer, a seguir àquele almoço igual a todos os outros. E levei a medalha no bolso embora, sem lhe dar grande valor.

Hoje, no final do dia, sozinha no carro, a respirar de alívio pelo fim de mais um dia afogada em trabalho, a sentir-me angustiada e cheia de sentimentos de culpa por não ser uma mãe mais presente, a maldizer a minha vida (não temos todos dias assim?), olhei para baixo e vi algo a brilhar, escondido. Estiquei a mão. Era a medalha. "A" medalha. Nas últimas mudanças de casa deve ter caído ali. "A" medalha. A medalha que o meu avô me deu. Talvez um ano antes de morrer. Deu-me sem motivo nenhum. Apenas porque sim. E deve ter sido dos últimos presentes que me deu. Não era Natal. Não era Páscoa. Não eram os meus anos. Era uma tarde qualquer. Dum dia qualquer. Mas o meu avô era assim: de dias sem datas. De presentes sem porquês. De histórias às vezes sem fim. De expressões em latim. De enigmas. De adivinhas e charadas. De regras. De horários. De piadas. E hoje, tantos e tantos anos desde aquele dia qualquer, recebi um mimo de quem tenho tantas saudades. E olhei para a medalha como que pela primeira vez. E adorei aquela medalha como nunca tinha adorado, com toda a adoração que ela merecia. Mais juros de mora. Até ficarmos quites: eu e a medalha. E apertei-a. Com muita força. Não era uma mão, mas foi como se fosse. Não veio acompanhada de expressões em latim, enigmas, adivinhas, charadas e piadas, mas foi como se fosse. E o final do dia... Dum dia qualquer. Ficou melhor. Muito melhor. As pequenas coisas. Está tudo nas pequenas coisas.

4 comentários:

  1. Curioso encontrar este teu post, logo hoje que publiquei um sobre o meu avô que perdi precisamente este fim de semana...

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    1. Ohh :( os meus pêsames... Beijinho

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    2. Obrigada. De facto, são as pequenas coisas que ajudam a dar sentido à vida :-)

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  2. Anónimo22:47

    Muito especial este texto!!!Gostei muito! Sabem tão bem estas pequenas coisas, acontece-me muitas vezes sentir-me feliz e de coração cheio e em paz com pequenas coisas, simples mas que dão uma felicidade pura. Beijinhos. Cátia G.

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