quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O regresso

O regresso ao trabalho está aí ao virar da esquina. E eu ainda nem consigo acreditar. Trabalhei os últimos meses antes do parto a ver a barriga lentamente a crescer, a sentir que os dias não passavam, a sentir que somava as semanas de gravidez ao ritmo mais lento de sempre, constantemente ansiosa por ver quem habitava dentro de mim, a contar as horas, os minutos até o dia acabar e poder ir para casa dar atenção à barriga. E as quatro últimas semanas de gravidez? Sentia que o tempo não passava. Simplesmente não passava. Era cruel. Olhava para o relógio e era sempre a mesma hora. O sol não se mexia no céu. Era eu, a minha barriga em espera e o computador a chamar por mim, sedento de prazos e atenção. E tinha que dar prioridade ao computador, mas em silêncio ia acariciando a barriga e dizia-lhe "logo à noite dou-te atenção". Só que a noite nunca mais chegava. Nem as sextas-feiras para ter o fim-de-semana todo para dar atenção e mimo à barriga. Nem o final das quarenta semanas. Sim, o tempo é cruel quando esperamos. Depois disso, quando finalmente o dia "D" chegou, alguém colocou novamente todos os relógios do mundo a trabalhar mais rápido que nunca. A terra desatou a fazer maratonas de rotação, cada rotação mais rápida que a anterior, o sol começou a desaparecer cada vez mais rápido no horizonte. E três meses voaram.

Três meses de paixão. De descoberta. De noites mal dormidas, primeiro. Mas sempre de muitos beijos. Mimos. Muitos mimos. É que a pele dum bebé... Já tocaram na pele dum bebé? É a superfície mais macia do  mundo! A pele dum bebé foi inventada para ser acariciada, tem que ter sido isso. E o cheirinho dum bebé... Já cheiraram um bebé? Foram inventados para ser cheirados, só podem ter sido. Alguém me disse uma vez que os olhos dos bebés são maiores que o resto da cara, comparativamente, para se tornarem irresistíveis perante as mães. Eu acho que tudo neles foi detalhadamente pensado, pela mãe natureza, para não lhes podermos resistir. A natureza terá dito "hmmm, choram o dia todo, não falam nem comunicam, têm fome de três em três horas, fazem cocó e xixi como gente grande, não têm dentes, não têm praticamente cabelo, hmmm... tenho que colocar alguns extra para pelo menos as mães conseguirem aturá-los". Só que a mãe natureza superou-se. E deu-lhes um cheirinho e um toque irresistível. Deu-lhes uns olhos gigantes e pestanudos, de olhar contemplativo e apaixonado. Deu-lhes um sorriso que é "só" o sorriso mais enternecedor que existe, algo que à partida poderia parecer impossível para um ser desdentado. Deu-lhes a vozinha mais doce que já foi inventada, mesmo que não saibam falar. E assim, mesmo entre choro, troca de fraldas e falta de sono, roupa suja e casa caótica, damos por nós completamente apaixonados e babados. Sim, de forma totalmente irracional.

Três meses que... já foram! E agora dói olhar para esta carinha e pensar que não poderei mais vê-la de manhã à noite. Terei que confiar que alguém saberá tomar conta dela tão bem quanto eu. Terei que confiar que alguém saberá fazê-la rir como eu faço. Que alguém saberá cantar-lhe até adormecer como eu canto. As músicas preferidas dela. Sim, terei que confiar que alguém saberá escolher as músicas preferidas para cantar como eu faço. Trocar-lhe as fraldas e dar aquele jeitinho à fralda no fim para ficar no sítio como eu faço. Limpar-lhe o pescoço como eu limpo. Pô-la a palrar como eu faço. Pô-la a "andar" como eu ponho. Pô-la em frente ao espelho e fingir que vai bater no próprio reflexo como eu faço. Ter os momentos de alegria que tem comigo. Trocar os olhares apaixonados que troca comigo. Entrelaçar as mãos como eu faço. Dar-lhe os beijos barulhentos na barriga como eu dou. Dançar o tango no colo como dança comigo. Terei que confiar que... Não. Quem quero enganar? No fundo, espero apenas que saibam tomar bem conta dela. Mas nunca tão bem quanto eu. Não, isso não. Sou a mãe. E há momentos que continuarão a ser só nossos. Espero. Desejo. Não, só eu saberei sempre quais são as músicas preferidas. E como devo cantar para adormecer, certo? Só eu saberei dar aquele jeitinho às fraldas. Limpar-lhe o pescoço. Pô-la a palrar. A fingir que anda. Pô-la a ver-se ao espelho daquela maneira. A rir-se. Só comigo (e com o pai, ok, há sempre lugar para o pai nesta equação) continuará a trocar olhares apaixonados. A entrelaçar as mãos. Só eu (e o pai, pronto) saberei beijá-la na barriga e pô-la a rir-se daquele jeito. Só comigo continuará a dançar o tango. Sim... Vai custar tanto, tanto separar-me desta pequenina, que já sinto o estômago pequenino e ainda faltam uns dias...

Será o cheirinho, será a pele, serão os olhos enormes, será este sorriso (mesmo desdentado), será a voz tão doce (mesmo sem falar)...? O que quer que a natureza tenha feito, fê-lo bem. De forma perfeita. Irrepreensível. Sim, porque só estou há três meses com esta pequena criatura e saber que vou deixá-la para ir trabalhar está a revelar-se uma tortura maior do que alguma vez poderia imaginar. As saudades estão já a ser maiores do que alguma vez senti. E este amor...? Sim, a mãe natureza sabe o que faz. Ai... Sabe bem demais.

9 comentários:

  1. Que texto maravilhoso :) obrigada por partilhar connosco este momento tão importante D sua vida!

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  2. é uma fase difícil mas rapidamente tudo se vai ajustar. É o ciclo da vida. O texto é lindo.

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  3. Anónimo23:15

    Nao sei a sua situacao profissional mas atualmente a lei preve licenca parental de 150 + 30 dias o que significa que nos primeiros 6 meses o bebe podera ficar ao cuidado dos pais. Para alem disso é possivel solicitar licenca alargada (3 meses a cada pai) o que dará um total de 12 meses.

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  4. Anónimo16:43

    Acho estranho que só tenha direito a 3 meses Pipa, mas isso com certeza está acordado com a entidade patronal.
    A minha filha tem dez anos e na altura tirei os 4 meses de licença a que tinha direito e acrescentei mais 22 dias úteis de férias.
    Já na altura achei pouco pois os bebês são tão pequeninos!

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Eis o que sinto com o meu bebé, por acaso, nascido no mesmo dia que a tua princesa;)

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  7. Anónimo22:22

    Que delícia de leitura!

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  8. Acho q 3 meses é pouco! Mas decerto q tudo vai correr bem e acabas por te habituar. Vai saber-te muito melhor chegar a casa ao fim do dia ;)

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  9. Que texto tão bonito Pipa :) bem, como todos a que nos tens habituado! Continuo a seguir as tuas aventuras com muito entusiasmo. Obrigada por continuares desse lado, a partilhar o teu tempo.

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