E, a arrastar-me, voltei para o hotel. Sabia que o homem podia voltar a qualquer momento, mas não conseguia correr mais que dez metros seguidos. Não tinha forças. Ia olhando para trás, mas felizmente não o vi mais. Por isso, andei a passo rápido e, a meio, dava mini corridas de cinco ou seis passos. A dada altura, vi uma rapariga que vinha a correr na minha direção. Comecei a gesticular e a pedir-lhe por tudo que não continuasse. Eu devia ter um aspeto terrível e assustador, naquele momento, porque ela arregalou muito os olhos e ficou branca, enquanto eu falava. Aproximou-se, tocou-me ao de leve nos ombros, com ar preocupado, e juntou-se a mim no regresso ao hotel. Comecei a cair em mim e a ganhar consciência daquilo que tinha acabado de sobreviver. Ao mesmo tempo, comecei a ter medo de estar com um discurso e um ar de louca, por isso, quando cheguei ao hotel e vi dois polícias junto ao portão que unia a praia ao hotel, tentei descrever-lhes o que tinha acabado de me acontecer com a maior calma que encontrei. Talvez tenha sido até exagerada, a calma que chamei a mim. Mas, mais uma vez, e mesmo com toda a calma que tentei colocar na história, vi olhos a arregalarem, enquanto eu falava, e as mãos a aproximarem-se do meu ombro.
- Está bem?
Claro que não estava bem. Combinámos que eu ia chamar o meu marido e voltava já, para ir com eles, os dois polícias, procurar o tal homem. Enquanto virava costas, apercebi-me que os dois polícias com que tinha acabado de falar já estavam a fazer telefonemas. Como falavam em crioulo entre eles, não percebi o que diziam, mas pelo tom parecia que estavam a chamar reforços. Andei até ao quarto do hotel. E aí, enquanto batia na porta e esperava que me abrisse, as lágrimas vieram em força. E o susto transformou-se em tremores. E o medo começou a tomar conta de mim. Chorei. E solucei. Como uma criança. Não quero pensar na imagem que ele terá tido quando abriu a porta. Pelo que vi ao espelho, cinco minutos depois, não foi uma imagem bonita. Eu estava cheia de areia no cabelo, nas pernas, tinha arranhões no pescoço, nos braços e nas pernas, e o cabelo completamente desalinhado. Ele abraçou-me, enquanto eu soluçava e contava a história, tentou acalmar-me e dizer-me que o pior já tinha passado e que era a heroína dele. Mas eu sentia-me tudo no mundo menos a heroína de alguém. No fim, fomos até à praia juntos.
Fui com a polícia de mota procurar o homem, mas nada. Depois disso, fomos de jeep até à esquadra, em Santa Maria. Mostraram-me imagens de suspeitos (tinham no computador uma pasta chamada "Gatunos 2014"), e chegámos à conclusão que poderia ser um deles. O problema é que, para nós, é difícil distinguir entre os africanos. Explicaram-me que, pela minha descrição, deveria ser senegalês, já que era mais escuro, magro, tinha lábios mais grossos e falava inglês. Foram simpáticos comigo, registaram a queixa e levaram-nos de volta ao hotel. No hotel, o gerente também nos chamou e deu-nos uma palavra de apoio. A verdade é que a praia em que tudo aconteceu já estava a 15 minutos do portão do hotel, por isso, nem me passou pela cabeça culpar o hotel pelo episódio.
Durante o resto do dia, a minha cabeça esteve a mil. Fechava os olhos e via tudo outra vez. Queria chorar, queria gritar, queria ir-me embora,... Mas depois olhava para a Constança e para ele e ganhava força e otimismo.
No dia seguinte, acordei como nova. Acordei decidida a esquecer tudo e a começar do zero. A verdade é que já tinha estado em Cabo Verde em 2008 e tinha achado tudo muito seguro. Não podia entrar em pânico, decidi. Histórias destas acontecem em qualquer parte do mundo. Eu apenas estava no lugar errado na hora errada. E o melhor de tudo é que tinha sobrevivido intacta, apenas sem o telemóvel.
- Nunca vamos contar esta história a ninguém, ok? Não quero que as pessoas se preocupem. Eu estou bem, pedi-lhe.
E decidi que nunca voltaria a falar deste episódio. O resto das férias foi perfeito. Perfeito. É estranho, quando penso nisso. Eu tinha acabado de viver a pior história da minha vida, como é que recuperei tão rápido? Não tenho resposta para isso. Apenas sei que recuperei.
Quando voltei, tinha apagado tudo. Até que, em casa de uns amigos, se começou a falar de histórias dramáticas. Um deles, psicólogo, disse que um dos motivos para não ficarmos traumatizados com um determinado episódio marcante era sentirmos que tínhamos encarado a situação e não tínhamos bloqueado no momento. Dei por mim a pensar: Foi isso!! Na altura, falei tanto, tanto, tanto com o homem, que senti que tinha encarado o problema. Foi isso!
E, também por isso, decidi que tinha que contar o que tinha acontecido. Falar. Encarar os problemas. Agir. Em vez de ignorar que existem. Em vez de bloquear. Apagar. Decidi fazer com este episódio o que fiz na altura: encará-lo. E conto-o, esperando que, contando, possa ajudar alguém que tenha passado por algo traumático também. Conto-o, esperando que, contando, o possa retirar de dentro de mim de vez. Acredito que falar ajuda sempre. E espero, ao ajudar-me a mim, ajudar mais alguém também.
Sem palavras Pipa :)**
ResponderEliminarÉs uma mulher de força! Inspiras-me **
Bem se conseguirmos ter a tua clareza nessa hora .. ainda bem que deste o conselho ..
ResponderEliminarQue grande força. Sempre disse e sempre pensei, que uma pessoa é muito mais forte do que pensa. E sorte oh sorte como és boa em certos momentos. Salvas vidas
ResponderEliminarsó agora é que consegui ler os teus "3" episódios :/ fiquei assim com um nó jesus....nem imagino como te sentis-te naquele momento!!!
ResponderEliminarMas agora que já passou fico contente por não teres entrado em pânico, por teres levado a cena com calma (pouca, mas alguma)
E fico FELIZ por felizmente não te ter acontecido nada!
um beijinho e um abracinho apertado ;)
Que força impressionante que demonstraste ter. Que historia! Daquelas que pensamos que só acontecem aos outros. Que tudo seja apagado de vez, e que nunca se volte a repetir. Beijinho
ResponderEliminarPippa,
ResponderEliminarJá passei por um período traumático na minha vida, com outros contornos, mas igualmente difícil. O que penso sempre é: eu consegui passar por aquilo. Tem todo o mérito por ter conseguido sobreviver. Força. :)
Um beijinho,
Inês.
É uma história mesmo horrível, mas tu és de facto uma heroína por teres conseguido reagir e enfrentar! Talvez nós tenhamos tanta força quanto a maior parte dos homens, só que não sabemos porque há séculos que nos dizem que somos frágeis e vulneráveis.
ResponderEliminarQue bom que conseguiste reagir dessa forma! Passei férias na Ilha do Sal, no hotel onde estiveste, mas em 2011 , andei por essas dunas sempre bem cedo e realmente nunca me passou pela cabeça,que tal situação pudesse acontecer, parece tudo tão seguro... Obrigada por partilhares este episódio lamentável, serve para estarmos mais atentos nestas situações..
ResponderEliminarBeijinho, Fátima...
Fez-me chorar. Espero que dê a volta bem por cima. Estes homens são um bando de animais. Infelizmente a minha história não teve esse desfecho. Não consegui lutar, tinha apenas 9 anos...
ResponderEliminarDeixou-me marcas para toda a vida. Entrei em auto-destruição, mas as minhas filhas salvaram-me. Espero que ultrapasse e que não deixe cicatriz.
Um beijinho