A certa altura, no entanto, o Anselmo L. começou a aproximar-se de nós. Convidei-o para a minha festa de anos e, para minha surpresa, apareceu. Fez o mesmo nas festas de aniversários seguintes, de outros colegas da turma. Comecei a vê-lo jogar futebol e à apanhada, nos intervalos. Comecei a vê-lo rir-se. Não foi à festa do final do ano, mas assistiu a dois ensaios. O Anselmo L. andava mais sociável e até parecia outra pessoa. No Natal, para surpresa de todos, ajudou até a decorar o pinheiro. Não participou na troca de presentes, mas quis assistir. Pareceu-me que estava com ar triste, mas estava lá. Passado dois dias, era a festa de Natal. Com certeza ele não iria, como sempre. Por aquilo que me ia percebendo, ele também acreditava em Deus, mas era de outra religião e onde se faziam as coisas de outra forma, sem pinheiros de Natal, presentes ou tantas festas. O dia da festa lá chegou e tudo corria bem. O primeiro grupo cantou. O segundo apresentou uma peça de teatro. Uma dança depois coreografada pelas miúdas mais giras da escola. Um Pai Natal a subir ao palco. Muita comida. Muita música. Crianças histéricas a correr dentro e fora da escola. Do resto do dia não me lembro bem. Não tenho nenhuma cara propriamente marcada na minha memória. Encontra-se tudo muito confuso e nublado, passados tantos anos. Houve, no entanto, algo que me marcou mais que tudo o resto. Enquanto todos gritavam, corriam e exibiam os seus presentes, no recreio, vi o Anselmo L. de lágrimas nos olhos e ar de profunda tristeza a ser arrastado pela mãe em fúria. A ser repreendido. Naquele momento, odiei a mãe dele. Aquela mãe insensível e ríspida que não o deixava divertir-se com os amigos. Que não o deixava receber presentes. Que não o deixava ser igual a nós. Fazer parte da equipa de futebol. Ou simplesmente festejar o Natal. Aquela mãe que o arrastava e humilhava em frente a todos. Odiei-a. E o pior é que, depois disso, o Anselmo L. voltou a isolar-se. A isolar-se. Até um dia desaparecer e nunca mais ser visto por ninguém.
O Anselmo L. desapareceu. E sinceramente, sempre que hoje leio algo sobre as testemunhas de Jeová, sempre que vejo algo relacionado com religiões (tema bastante recorrente no Homeland, por exemplo) lembro-me dele. Espero que tenha encontrado alguma paz de espírito. E que tenha decidido viver plenamente a sua religião ou, se não acredita naqueles princípios, que tenha saído. Imagino que seja difícil afastar-se daquilo em que todos os seus acreditavam, mas se não era feliz a seguir aqueles ideais, espero que tenha tido coragem de o mostrar. Sim, o Anselmo Ralph está na moda. Mas de cada vez que oiço o nome dele, só desejo que o outro homónimo se tenha tornado finalmente alguém feliz. Sinceramente, depois de tudo o que sofreu naqueles anos, acho que merece. Com ou sem futebol. Com ou sem presentes. Com ou sem Natal. Só espero que tenha encontrado alguma paz.
Curioso...acho que a sua descrição ilustra bem o impacto que as escolhas que os pais fazem para os seus filhos no que toca à religião (os meus pais também escolheram a minha e isso não teve qualquer impacto negativo na minha vida, tirando a penitência que era, para mim, ir para a catequese numa paróquia onde não conhecia ninguém, já que estudava noutro local). No entanto, neste caso, acho que as maiorias devem aceitar as minorias, mas as minorias também devem fazer por se integrar. Se calhar nenhum colega rejeitava o Anselmo só por ele ser Testemunha de Jeová (mais depressa o fariam por ser gordo/magro 'demais', usar óculos ou aparelho - no meu tempo pelo menos era assim) mas parece-me que os pais nunca o deixaram integrar-se, numa coisa tão inocente como partilhar actividades com outras crianças. Não percebo porque teimam em ver tanta 'maldade' em crianças - como a família muçulmana que dizia que não era bom para filha (uma criança!!) ver outras crianças em fato de banho!! Que mente mais retorcida! Aqui é a mesma coisa... coitado do Anselmo, que ia ser desvirtuado por celebrar, dançar, fazer teatro e brincar com os colegas da escola! Também espero que o Anselmo tenha encontrado paz, sim...
ResponderEliminarE na continuação do meu post anterior (que já ia longo) esta é também uma questão que já presenciei, infelizmente. Uma criança vizinha dos meus pais, filho único, viveu muitos dramas familiares causados por uma espiral de acontecimentos: o divórcio dos pais que só não se concretizou porque a mãe teve um esgotamento que a deixou com problemas mentais (desculpem a expressão :S mas não me lembrei de outra) dos quais nunca recuperou a 100%; o falecimento súbito do pai, um dos mais amorosos que conheci e o pilar daquela família; a mudança para casa dos avós - Testemunhas de Jeová - que não o permitiram levar com ele a única lembrança viva do pai: uma cadela do mais inofensivo e calmo que há, tão pequena como um ursinho de pelúcia, que pai e filho adoravam de paixão! Com a desculpa de que tinham um gato... Eu sei que não existe relação directa entre uma coisa e outra, e as pessoas da mesma religião que me perdoem, mas aquele gesto, vindo de uns avós, aqueles que a seguir aos nossos pais, são os que mais nos devem acarinhar, definiu a imagem que tenho deles.
ResponderEliminarMesmo já tendo uma cadela, eu e os meus pais aceitamos acolhê-la a P., nunca deixaríamos ir para casa de estranhos, sobretudo por consideração ao dono que já nos havia dito que nós seríamos a família ideal para ela. Durante uns meses o menino veio a nossa casa visitá-la. Com o tempo deixou de vir...não sabemos pq... Mas nesse ano, pelo Natal, numa das visitas, oferecemos-lhe uma prenda, por sabermos que ao contrário dos amiguinhos da escola ele não teria nenhuma. O natal dele podia não ser igual ao meu natal, mas no meu natal aquele menino triste era o que mais merecia uma prenda! A prenda que nós recebemos em troca foi um sorriso do tamanho do mundo! E não acredito que fizesse dele pior Jeová... E hoje, do melhor que poderíamos fazer por eles, a P. é uma das cadelinhas mais felizes do mundo (excepto no dia da tosquia :P).
Fiquei comovida e tocada. Tive uma colega ,que tal como o teu Anselmo isolou-se não por querer, mas pelos pais assim entenderem. Hoje vejo-a triste, tem uma vida que nunca foi o que sonhou para ela, não pode ir para a faculdade, acabou por casar e ter filhos, mas não é uma pessoa contente.
ResponderEliminarnadinhadeimportante.blogspot.pt
Primeiro o meu melhor amigo chama-se Anselmo L. Segundo, também tenho um amigo testemunha de geová, que o não por vontade própria mas pela vontade dos pais e já não é nenhuma criança para ter os pais a pressionarem-no para tal.
ResponderEliminarEste texto deixou-me com lágrimas nos olhos... Detesto crenças radicalistas! Não deixar uma criança envolver-se em actividades e no espírito da escola, provocando-lhe infelicidade, é isso mesmo, ser radicalista! São coisas que nunca iriam prejudicá-lo, muito pelo contrário! Os pais devem educar os filhos segundo os princípios em que acreditam, mas nunca impor, porque cada um deve ser livre de fazer as suas próprias escolhas!
ResponderEliminarEspero que o Anselmo tenha encontrado o seu caminho na vida, um caminho em que acredite e que o faça verdadeiramente feliz...
Não conheço nenhuma testemunha de Jeová.
ResponderEliminarNão tenho religião. Fui batizada, andei na catequese, mas mais por causa da minha mãe. Fui criada a ter escolhas livres.
A minha filha à uns tempos insistiu que queria ir à missa. Tem 14 anos. Quer ir, vá.
Eu nunca a incentivei (nem descentivei) para nada.
Muitas vezes Testemunhas de Jeová vêm ter comigo com aquelas lengas lengas. Não tenho nada contra ninguém, cada um é livre para fazer o que quer. Mas por favor!!! Os seus "ensinamentos" são.. enfim!!!
Não conheço o Anselmo L mas estive à conversa com o Ralph e é um rapaz cinco estrelas.
ResponderEliminarhomem sem blogue
homemsemblogue.blogspot.pt