Uma noite, ele saiu de casa dela depois dum jantar cuja sobremesa se prolongou, e, talvez ainda com o arrebatamento do encontro, esqueceu-se do telemóvel. Ela queria avisá-lo, mas não tinha como. Tinha que esperar que ele reparasse e voltasse para trás. Os minutos foram passando e nada. Uma hora, duas. Decidiu ir dormir. Os encontros arrebatadores exigem um sono reparador à altura. Pegou no telemóvel dele e colocou-o na mesinha de cabeceira. Deitou-se. Apagou a luz. Um "bip" despertou-a. "Bip!", pareceu insistir o pequeno aparelho. Olhou para o telemóvel. Era uma mensagem. O remetente tinha um nome feminino que não reconheceu. "Quem será?... Bem, não é da minha conta, vou dormir". Mas não conseguia. A sua cabeça pensava em mil hipóteses. "Uma colega? Uma amiga? Prima? Que quererá a estas horas? Será que tem outra? Pior - será importante? Espera. Não é nada disso... Já sei. Como é que não vi antes? É um telemóvel de alguém que arranjou, e foi a única maneira de me dar notícias. Tenho que ler, é ele a comunicar comigo, já que não tem telemóvel!" E assim se convenceu a pegar no telemóvel dele e esquecer as regras da privacidade. Tinha que ser: a mensagem era para ela! Abriu a mensagem.
- Estou a ouvir um Nocturno do Chopin e lembrei-me de ti. Tenho saudades tuas. Tens que vir cá ver como ficou a quinta, depois das obras de restauração. Até os cavalos parecem mais felizes.
"Desculpa?", pensou ela, furiosa. A música clássica, a quinta, os cavalos. A conversa era a mesma. Só que, pelos vistos, esta estava um passo à frente e já tinha até tudo isso. Ficou furiosa. A cabeça parecia que ia explodir. Sentia-se traída. Enganada. Ele tinha-a enganado. Usava aqueles trunfos com todas. Ela não era especial, era só mais uma a quem ele lançava o charme e queria ser idolatrado por isso. Ele precisava de romance. E usava quem pudesse para obter algum. Nessa noite, ela nem conseguiu dormir. Foi dominada pelos piores pensamentos possíveis. Ele era uma fraude e ela sentia-se num pesadelo. No dia seguinte, ele tocou à campainha logo às 8h. Ela deixou-o subir, enquanto espreitava ao espelho o próprio reflexo cansado e cheio de olheiras. Deixou-o entrar.
- Tens aqui o teu telemóvel. Foi isso que vieste buscar?
- Sim! Desculpa. Esqueci-me completamente.
- Aqui está. Podes levá-lo. Até logo, tenho que ir arranjar-me.
- Espera. Trouxe o pequeno-almoço. Não queres que prepare? Toma um banho enquanto eu preparo isto.
- Não, obrigada. Podes levar.
- Que tens?
- Que tenho? Nada. Não tenho nada. Aliás, nós não temos nada, não é? Por isso, o que é que eu havia de ter?
- Não estou a perceber. Fiz alguma coisa?
- Nada. Não fizeste nada. Está tudo bem. Leva o teu telemóvel.
- Calma... Que tens? Diz-me...
- Não me apetece falar.
- Tem a ver com o meu telemóvel?
- Ouve: esquece! Se andas com outras, não tenho nada a ver com isso, vai à tua vida.
- Não me digas que foi a X que escreveu alguma coisa.
- ...
- Foi? Diz-me, estás a deixar-me preocupado!
- Ok. Foi. E eu li, desculpa, mas li. Pensei que fosses tu a escrever-me, já que não tinhas telemóvel. Mas ainda bem que li. Percebi que a tua conversa é sempre a mesma!!
- Desculpa?
- Sim... Os cavalos. A quinta. A música clássica... Eu pensei que me estavas a contar isso tudo, porque eu era especial. Afinal, contas a todas que aparecem à frente. Atiras o isco a ver se cola. Atiras os trunfos todos, lanças o charme e tal. Precisas de romance e queres obtê-lo à força toda em qualquer lugar.
- Estás a interpretar tudo mal. A X é minha ex namorada. E conhecia-me como ninguém. É normal que soubesse ao fim de três anos o que eu gostava, tal como tu sabes... e ao fim de apenas dois meses. Já pensaste nisso?
- Não é nada. Afinal não sou especial.
- Claro que és. Contei-te tudo sobre mim. E tu própria só tiveste a confirmação que... sou coerente!! O que te disse que gosto é o que sou. Só tens que pensar nisso. Não criei uma personagem, não inventei nada. Abri-me totalmente contigo. Partilhei tudo contigo. Porque gosto mesmo de ti. Porque me estou a apaixonar por ti!
Ela sorriu, por fim. Ele não era viciado em romance. Era viciado naqueles sonhos que tinha. Era viciado em partilhá-los com quem fosse especial. E ela era especial. E estava, afinal de contas, também completamente viciada. Estava viciada nele.
Tenho uma lágrima ao canto do olho pah ;)
ResponderEliminarPs: adoro as tuas histórias e o teu blog.
Bj
Nada melhor, para começar a semana " que texto " . Parabéns .
ResponderEliminarPara quando um Romance?? Já tens uma leitora fiel para quando isso acontecer ;)
ResponderEliminarAguardo ansiosamente :D