A minha avó tornou-se, nos últimos meses, um diário a quem arrancaram as últimas páginas. E ficou sem folhas para ir reescrevendo o presente e actualizando as suas memórias. Às vezes é assustador. Pensamos que não é a mesma pessoa. Às vezes diz o que não esperamos ouvir dela. Troca nomes. Confunde datas. Eu tento vê-la como uma avó mais jovem e falar sobre acontecimentos antigos. Ver os olhos a brilharem quando recorda, em voz alta, histórias que a marcaram. Ouvi-la cantar as músicas preferidas desde os tempos de criança. Balançar o corpo ao som das músicas que gosta. Descrever o percurso que fazia para a escola. Ou até o primeiro amor. Mas, para mim, é fácil vê-la assim. É minha avó, consigo ter o distanciamento necessário para fazer este exercício, porque no fundo sempre fomos mais amigas e confidentes que propriamente avó e neta. Sempre partilhámos um mundo nosso, com ela a falar-me da sua pintura e dos seus poemas perante a minha admiração total. A minha avó sempre me maravilhou com o seu lado de artista. Já os filhos... Bem, esses não aceitam o passado e a repetição de tantas histórias. Querem presente. Querem vê-la ser mãe. Querem vê-la tomar decisões. Querem vê-la pensar e lembrar-se no aqui e agora, não no antes, há vinte anos.
- Onde deixou os óculos?
- Que óculos?
- Os óculos que tinha aqui.
- Não sei.
E não consigo imaginar a confusão que irá na sua cabeça. Óculos? O que interessam os óculos? Tantas perguntas e eu estou tão feliz a ouvir esta música. Porque não me deixam estar? Sou criança, não quero ter responsabilidades. Estou feliz. Deixem-me estar.
- Que óculos?
- Os óculos que tinha aqui.
- Não sei.
E não consigo imaginar a confusão que irá na sua cabeça. Óculos? O que interessam os óculos? Tantas perguntas e eu estou tão feliz a ouvir esta música. Porque não me deixam estar? Sou criança, não quero ter responsabilidades. Estou feliz. Deixem-me estar.
Eu deixo. Mas sou neta. Sou amiga. Confidente. Sou fã incondicional. Não consigo imaginar o que será ver a mãe, a nossa âncora assim...
O teu jeito especial de nos comover.... ***** R.
ResponderEliminarO que antes fora um farol de porto de abrigo agora precisa que o ajudem a âncorar...
ResponderEliminarMuitos Parabéns pela excelente descrição. I m dia qd o farol da minha mãe se apagar irei lembrar me desta história ;)
É mesmo muito triste Pippa, bem sei.
ResponderEliminarFelizmente a minha avó não ficou assim, mas convivo diariamente com pessoas que têm esse problema. É inquietante e deixa-me o coração apertadinho...
ResponderEliminarA mim assusta-me pensar que um dia posso ficar assim.
ResponderEliminarvidademulheraos40.blogspot.com.
o meu avô é igual, lembra se de histórias super antigas e que conta 20 vezes por dia e depois pergunta-me 7 vezes por dia que dia da semana é. a mim não me custa vê-lo assim, é como se fosse uma criança outra vez, a recordar os tempos antigos. mas por outro lado tenho medo que esteja perto o final das suas histórias.... um grande beijinho para ti pippa, adoro a forma como escreves.
ResponderEliminarTenho medo que um dia os meus pais fiquem assim...
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