quarta-feira, 31 de julho de 2013

Ainda te lembras?

Somos o que pensamos. Somos aquilo de que nos lembramos. Somos, em grande parte, as nossas memórias. Por isso, se nos tirarem as nossas recordações, ficamos com o quê? Se, de repente, os nossos pensamentos se tornarem um nevoeiro, se o passado e o presente ficarem misturados, ficamos onde? Se, de repente, não soubermos onde acabámos de colocar os óculos, mas nos lembrarmos perfeitamente do primeiro dia de aulas, isso significa que voltámos a ser crianças? Se, de repente, não nos lembrarmos do casamento da neta há meses, mas soubermos descrever o seu baptizado na perfeição, quer dizer que os anos não passaram dentro de nós?

A minha avó tornou-se, nos últimos meses, um diário a quem arrancaram as últimas páginas. E ficou sem folhas para ir reescrevendo o presente e actualizando as suas memórias. Às vezes é assustador. Pensamos que não é a mesma pessoa. Às vezes diz o que não esperamos ouvir dela. Troca nomes. Confunde datas. Eu tento vê-la como uma avó mais jovem e falar sobre acontecimentos antigos. Ver os olhos a brilharem quando recorda, em voz alta, histórias que a marcaram. Ouvi-la cantar as músicas preferidas desde os tempos de criança. Balançar o corpo ao som das músicas que gosta. Descrever o percurso que fazia para a escola. Ou até o primeiro amor. Mas, para mim, é fácil vê-la assim. É minha avó, consigo ter o distanciamento necessário para fazer este exercício, porque no fundo sempre fomos mais amigas e confidentes que propriamente avó e neta. Sempre partilhámos um mundo nosso, com ela a falar-me da sua pintura e dos seus poemas perante a minha admiração total. A minha avó sempre me maravilhou com o seu lado de artista. Já os filhos... Bem, esses não aceitam o passado e a repetição de tantas histórias. Querem presente. Querem vê-la ser mãe. Querem vê-la tomar decisões. Querem vê-la pensar e lembrar-se no aqui e agora, não no antes, há vinte anos.
- Onde deixou os óculos?
- Que óculos?
- Os óculos que tinha aqui.
- Não sei.
E não consigo imaginar a confusão que irá na sua cabeça. Óculos? O que interessam os óculos? Tantas perguntas e eu estou tão feliz a ouvir esta música. Porque não me deixam estar? Sou criança, não quero ter responsabilidades. Estou feliz. Deixem-me estar.

Eu deixo. Mas sou neta. Sou amiga. Confidente. Sou fã incondicional. Não consigo imaginar o que será ver a mãe, a nossa âncora assim...

7 comentários:

  1. Anónimo14:40

    O teu jeito especial de nos comover.... ***** R.

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  2. O que antes fora um farol de porto de abrigo agora precisa que o ajudem a âncorar...
    Muitos Parabéns pela excelente descrição. I m dia qd o farol da minha mãe se apagar irei lembrar me desta história ;)

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  3. É mesmo muito triste Pippa, bem sei.

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  4. Felizmente a minha avó não ficou assim, mas convivo diariamente com pessoas que têm esse problema. É inquietante e deixa-me o coração apertadinho...

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  5. A mim assusta-me pensar que um dia posso ficar assim.
    vidademulheraos40.blogspot.com.

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  6. Anónimo20:54

    o meu avô é igual, lembra se de histórias super antigas e que conta 20 vezes por dia e depois pergunta-me 7 vezes por dia que dia da semana é. a mim não me custa vê-lo assim, é como se fosse uma criança outra vez, a recordar os tempos antigos. mas por outro lado tenho medo que esteja perto o final das suas histórias.... um grande beijinho para ti pippa, adoro a forma como escreves.

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  7. Tenho medo que um dia os meus pais fiquem assim...

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