quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O primeiro beijo

Ela estava diferente. Parecia mais adulta. Sentava-se de uma forma nova, que nunca lhe tinha visto. As costas direitas. O semblante mais sério. Cruzava as pernas com desenvoltura. Ouvia mais do que falava. Sorria de forma contida.

E eu estranhava. Aquela era a minha menina. A minha pulguinha.

Via-a e gostava de a insultar. Despenteá-la. Dar-lhe uns encontrões. Os mimos não queriam nada connosco. Era sempre um reencontro meio bruto e agressivo. Mas era assim que nos entendíamos.

A nova postura estava a fazer-me confusão. Não a reconhecia. Este Verão tentei aproximar-me, como antes. Chamei-lhe "pulga", fez-me um sorriso amarelo, como se, subitamente, tivesse 60 anos e não se identificasse com este tipo de alcunhas.

Perguntei-lhe pelas amigas do colégio. As aulas de violino. "Tudo bem, madrinha". E até o "madrinha" soava diferente, mais sábio. Nas mãos, um livro. "De que fala esse livro, palerma?". "Sobre uma rapariga de 16 anos de Lisboa, que anda num colégio, a forma como perdeu a virgindade, sexo, drogas... Tinhas que ler, é difícil resumir". Engoli em seco.

Tirei-lhe o livro das mãos e li na diagonal. Fiquei chocada. Aquele livro era sobre uma menina da idade dela. E o modo desprendido como lidava com o sexo, com os rapazes, e partia em busca de novas experiências, entre as quais as drogas. Uma espécie de "Filhos da Droga" moderno e mais assustador, porque se passava debaixo dos nossos olhos, em famílias ditas abastadas e supostamente equilibradas. Fiquei assustada. Até o nome era o mesmo. "Isto é assim no teu colégio?" Ela riu-se. "Não, esse livro exagera muito".

Mesmo assim fiquei assustada e enveredei por uma conversa diferente, tentando adoptar uma postura descontraída e cool, de melhor amiga. Falei-lhe do meu primeiro amor, das minhas primeiras experiências. Adoptei a táctica da "moeda de troca" - contamos algo íntimo à espera de algo também íntimo em troca. Nada... Fiquei frustrada.

Levantou-se, foi ter com o irmão e os amigos dele. Nadaram. Riram. Brincaram. E a minha pulguinha reapareceu, ali entre os raios de sol. Ali, junto ao rio. E aquelas gargalhadas eram de criança outra vez. Suspirei de alívio. Ela estava ali. Escondida por aquela postura mais adulta, mas estava ali.

O Verão acabou. E a menina-mulher voltou à sua vida.

Ontem, vimo-nos outra vez. Abraçou-me. Sorriu. Insultou-me. E deu duas gargalhadas. "Como estás, palerma?" "Bem, madrinha." "Estás muito gira, sabias?". "Obrigada." Passado uns minutos, a confissão: "namoro". "Namoras?" "Sim... com aquele amigo do meu irmão que estava connosco nas férias, sabes? Demos o primeiro beijo no fim do Verão. Mas toda a gente já sabia que eu gostava dele. E pelos vistos ele também gostava de mim".

Fez-se luz. O ar sério. As costas direitas. O sorriso amarelo. O nervosismo com as piadas. O livro nas mãos um pouco tremidas. Era o AMOR a aparecer naquele coração ainda tão pequenino. O Amor. As borboletas na barriga. O não saber como agir. A garganta seca. A voz que não sai como queremos. O cérebro que pára.

O puzzle compôs-se. A minha pulguinha apaixonada. E a contar-me tudo como antes, a mim e à minha irmã. De novo confidentes, as três. A partilhar histórias e a ensinar esta menina a ser mulher. De preferência, com aquele maldito livro guardado a sete chaves. A crescer com calma. A saborear o primeiro beijo. O primeiro Amor.

Bem-vinda à vida adulta, minha pulga. :)

3 comentários:

  1. Bonito texto, gostei muito.
    Vê-las crescer...sensação agri-doce, não é?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito. Nem acredito que já deu o primeiro beijo. :)

      Eliminar
  2. Adorei este post!
    Estive largos meses afastado da blogosfera, hoje dei de caras com este blog e no lugar de estar agora a ver um filme, estou a ler o blog ao som de boa música.
    Parabéns pelo blog.

    ResponderEliminar