quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A interrupção.

Há muitos e muitos anos, corria o ano da graça de 1998, debatia-se acesamente, neste pacato país virado para o mar, se a interrupção voluntária da gravidez realizada até às primeiras dez semanas de gravidez, e por opção da mulher, deveria ser penalizada (ie, constituir crime e ser punida) ou não. Eu, menor de idade sem grande conhecimento da vida, achava aquilo tudo um absurdo e era totalmente contra a despenalização. Porquê? Porque a minha tenra idade levava-me a acreditar que só engravidava quem queria, que a vida humana era sagrada e todos os seres humanos tinham o direito à vida desde a sua conceção. A minha opinião era desprovida de sentido prático – acho que temia apenas que todas as mulheres desatassem a interromper voluntariamente as suas gravidezes, o que me parecia totalmente contra natura. Nesse ano, a pergunta acabaria por ir a referendo e o não à despenalização ganhou com uma margem mínima – 51%. Os portugueses estavam divididos.

Muitos e muitos anos depois, corria o ano da graça de 2004, já eu maior de idade e a viver sozinha, o telefone tocou às 2h da manhã. Era uma amiga que conhecia há pouco, mas que sabia que confiava bastante em mim:
- Preciso de ajuda.
- Que se passa?
- Preciso mesmo de ajuda. Por favor anda buscar-me e já te explico tudo.

Saí a correr. Peguei nela, que tremia de frio ou medo, não sei. A história era triste, muito triste: mesmo a tomar a pílula, um antibiótico tinha “anulado” o efeito do contracetivo e ela tinha engravidado do namorado. Só que, perante a notícia, o namorado reagiu mal e pediu-lhe que abortasse, pois eram novos e não tinham condições para sustentar uma criança. Ela acabou por viajar até Espanha, sozinha, onde, numa clínica habilitada a realizar IVG, se submeteu a todos os procedimentos. Contou-me tudo o que passou, tudo o que teve que pagar sozinha, tudo o que chorou e a dor que ainda sentia. E contou que, depois disso, a relação nunca mais ficou igual. Nesse dia, tinham tido uma discussão mais feia que a levou a sair de casa. Ouvi a história e fiquei revoltada por ela, pelo namorado, pela forma como teve que viajar clandestinamente até Espanha, pelo dinheiro que lhe cobraram, pela forma como o assunto tinha que ser tabu, porque era tão mal visto, por tudo… Ela estava a sofrer e eu sofri também com ela. Naquele dia, parte de mim mudou.
Três anos depois, em fevereiro, houve novo referendo, desta feita com 59% dos votos (o meu incluído) a favor da despenalização. Apesar de o número de votos não ter sido suficiente para tornar o referendo vinculativo, a lei acabou por ser aprovada, estipulando-se um período de reflexão de três dias entre a consulta e o procedimento, proporcionando-se à mulher acompanhamento psicológico, para evitar decisões precipitadas ou pouco ponderadas.

Hoje lembrei-me deste assunto, porque em conversa com a minha irmã falávamos duma amiga dela que tinha sido mãe aos 18 anos.. Dizia-me a minha irmã:
- …Conclusão: neste momento, a mãe da criança é a avó, porque a mãe está a estudar e nunca está com a filha.
- E o pai?
- Não sei, mas tenho ideia que não estuda nem trabalha.
- Achas que deviam ter tido o filho, assim nessas condições?
- É difícil dizer. Um dia até podem dizer que valeu tudo a pena. Mas, sinceramente, acho que foi uma irresponsabilidade terem a criança. Se não tinham condições para a ter, foi um ato de egoísmo colocar uma criança no mundo. Eu não conseguia ter.

Olhei para a minha irmã e fiquei ali uns segundos a pensar naquilo. Não sei se é por a minha irmã ter feito 18 anos num país que já tinha a despenalização da IVG aprovada, mas o que é certo é que a minha "pequenina" é muito mais prática do que eu era até àquele telefonema, tantos tantos anos atrás. Talvez sem esse telefonema, esta conversa fosse hoje diferente e eu tivesse discutido acesamente a opinião dela. Hoje em dia, no entanto, a opinião dela, que é muito mais liberal que a minha opinião há dez anos atrás, coincide. Acredito que é uma decisão que apenas faz parte da decisão ponderada de cada mulher. Uma criança não é um brinquedo que se possa “experimentar” e tem que ser muito desejada. Se esta maneira de ver as coisas entra em conflito com a minha religião? Não sei, mas gosto de acreditar que as mulheres que lutam por uma vida melhor merecem tanto quanto as outras um lugar no céu. Porque, no fundo, é disso que se trata – ponderar quando há realmente condições para se ter uma criança. Se hoje em dia defendo com unhas e dentes a decisão de alguém optar por realizar uma IVG? Não defendo nem critico. Defendo que é opção de cada mulher/casal, que devem poder fazê-lo em qualquer hospital de forma acessível e sem clandestinidade ou olhares que julgam, porque saberão sempre ponderar os prós e contras. A verdade é que nunca conseguimos realmente opinar até nos calhar a nós uma decisão deste calibre, não é?... O que acham do tema?

6 comentários:

  1. Anónimo15:36

    Ola pippa!
    Eu tambem sou a favor mas defendo que nao devia ser gratuito.
    Num momento em que o pais atravessa os problemas economicos que atravessa
    nao devia ser o estado a pagar. Nao deviam ser os outros contribuientes a pagar!

    Tenho um irmao enfermeiro. E muita gente nao faz ideia do numero de mulheres
    que fez 3, 4 abortos. E enquanto que o dinheiro e os recursos podiam ser canalizados
    para outros doentes que estao dias e dias em lista de espera, e gasto com pessoas
    que sao irresponsaveis!

    Estou a escrever de um teclado ingles peco desculpa pela falta de acentos.

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  2. Anónimo17:18

    Eu sou a favor da despenalização, pois também me parece que uma IVG não é um acto irreflectido e, portanto, nenhuma mulher opta por o fazer sem ter ponderado bem o que isso significa. A IVG é um direito de a mulher/o casal poder escolher qual o rumo a dar à sua vida e está em jogo colocar neste mundo uma vida, que tem de ser amada, alimentada, preservada, defendida, e isso só é possível quando a mãe/pai aceitam a responsabilidade de assegurar essa tarefa para o resto das suas vidas.
    Contudo, também sei que há casos e casos e que, efectivamente, e perante o meu grande espanto, há mulheres que utilizam o IGV como um método anti-concepcional. Essas mulheres é que não poderiam, em meu entender, usufruir de IVG's gratuitas. Uma gravidez não desejada - ou porque o verdadeiro anti-conceptivo falhou, como no caso da tua amiga, ou por um qualquer descuido a que todas estamos sujeitas - pode acontecer; mas 2, 3, 4 gravidezes indesejadas em curtos períodos de tempo.... já não lhe chamo descuido. Chama-se irresponsabilidade, abuso, desrespeito até, pela luta (ganha) da despenalização do aborto. Forma de resolver isto? Não sei, talvez estabelecer qual o número de abortos que pode ser considerado "razoável" e a partir desse número cobrar um valor (alto) pela IVG que se seguir... De facto não faz sentido que o Estado gaste mais dinheiro em IVG do que na assistência a casais que sofrem de infertilidade, por exemplo....

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  3. Eu lembro-me perfeitamente desse 1º referendo e fui votar SIM nele.

    Quanto ao que se passou com a tua amiga, é LAMENTÁVEL a falta de atitude do namorado dela, que nem sequer teve a decência de a acompanhar.
    Ela teve ali uma pequena percentagem de culpa pois deveria estar consciente que antibióticos podem anular o efeito da pílula, mas ele revelou-se um ser desprezível.

    Quanto ao tema em si, concordo com a visão da tua irmã. Não se deve colocar uma criança neste mundo só porque sim. Mesmo havendo um descuido é preciso pensar muito bem e tomar a decisão considerando a vida que os pais levam. É verdade que a mãe pode tomar uma decisão unilateral uma vez que o corpo é dela, mas a meu ver, deverá ter em conta a vontade do pai, sempre.

    Quanto à interrupção voluntária da gravidez, eu propunha uma adenda à lei, para que o preço fosse aumentando a cada interrupção, de forma a desincentivar esta forma de "contracetivo" que está a ser muito usada.

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  4. Tenho 18 anos e, tal com a sua irmã, já os fiz num país onde o aborto já era legal... Ainda assim não consigo ser tão prática! É uma questão que me causa muita confusão porque não consigo deixar de acreditar que a vida começa na conceção e não após as 10 semanas ou 20 semanas (data até à qual, segundo sei, é permitido realizar um aborto de uma criança saudável nos E.U.A). Dito isto, acho que não seria capaz de fazer um aborto mas jamais seria capaz de condenar alguém que tenha feito uma IVG pelos motivos que levaram a sua amiga a fazê-la e estaria lá para apoiar uma amiga que passasse por uma situação semelhante, mas não sem antes garantir que ela tinha pensado em TODAS as opções, tal com a adoção! Quanto a ser grátis ou não, acho que devia depender da situação económica da mulher em questão e também do número de abortos realizados...

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  5. Anónimo23:24

    Também concordo que seja legal, mas não que seja gratuito. Como já foi aqui dito, há mulheres a fazer abortos repetidamente, por irresponsabilidade. E estas têm mais rapidez de resposta por parte dos serviços de saúde do que doentes com cancro. É inadmissível!

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  6. Anónimo10:57

    acabo de ler nas noticias que ainda há uns deputados do PSD e do CDS que querem voltar atrás e dar sem efeito a lei de despenalização ... tristes

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