Neste caso, a verdade só foi desvendada naquela Terça-feira fria de Inverno, em pleno julgamento, perante o choque do juiz, procurador, advogados e testemunhas.
Mas, para chegar a esse dia, meio ano foi preciso esperar. Seis meses de dúvidas, acusações várias, insultos, carrinhas destruídas, teorias da conspiração sussurradas em todos os cantos daquela terra conservadora. E mal sabia aquela gente que a imaginação de todos juntos não chegava perto da verdadeira história.
Pois recuemos então para o dia em que tudo começou: aquela jovem loira, de madeixas impecavelmente feitas, pele queimada pelo sol, um pouco forte e voz grave acordou a sua rua, naquela manhã quente de Agosto, com um choro descontrolado. "O que aconteceu? O que aconteceu??", acudiram prontamente os vizinhos. "A minha carrinha foi destruída! Está sem tinta, cheia dum líquido estranho! O que vai ser de mim? Vou ficar sem a minha carrinha! Vou levá-la à oficina a ver o que podem fazer. Vai custar-me os olhos da cara, aquele estrago!!"
Perante aquele choro transtornado, ninguém se lembrou sequer de pedir para ver a carrinha. Teria-a guardado, pois claro, para não se estragar ainda mais sob aquele sol tórrido. As dúvidas começaram prontamente: "quem seria capaz de tamanha maldade?".
A jovem tinha, no entanto, a resposta: uma testemunha tinha assistido a tudo, apontado a matrícula da viatura de onde saíram os vândalos e ela ia descobrir a quem pertencia a referida viatura. O advogado iria ajudá-la. Reuniram-se e ela contou-lhe da nota deixada na sua carrinha dizendo, apenas "Sei quem fez isto ao seu carro. A minha morada é XXX" e do encontro que teve com a testemunha, uma senhora que nunca tinha visto na vida, mas com grande sentido de dever cívico. Descreveu ao advogado a marca da viatura, cor e matrícula. Tal como a jovem desconfiava, juntos apuraram que era exactamente a pessoa que tinha em mente: uma antiga colaboradora sua que tinha lidado mal com a não renovação do contrato de trabalho.
O advogado tinha a vida facilitada, portanto. Tinha testemunhas, tinha o orçamento da oficina, e tinha a identificação de quem tinha, alegadamente, causado os estragos. Teve também conhecimento de que muitos outros processos com aquelas mesmas partes existiam já.
A história parecia simples: como tantas vezes acontece, os trabalhadores não reagem bem ao fim do contrato e revoltam-se contra a entidade empregadora. Não havia ali nada transcendente.
No dia do julgamento, a arguida chegou cabisbaixa, vestida com uns jeans gastos e um casaco de ganga também, cabelos castanhos bem tratados e voz hesitante. Parecia nervosa com o confronto com a sua antiga empregadora. Os presentes pensavam todos sensivelmente o mesmo, quando olhavam, ora para uma, ora para outra: "infelizmente, com o desemprego que há, percebe-se que as pessoas não lidem bem com isto". A arguida, nervosa, tremia. Até que, quando foi ouvida, a sua voz ergueu-se, segura, e, com confiança, revelou um dado até aí não revelado: "tivemos uma relação".
- Como?
- Tivemos uma relação.
- Uma relação de trabalho?
- Não. Agora é legal, não é? Pode-se dizer... uma relação...
- Relação... Eram namoradas, é isso que quer dizer?
- Sim. Pode-se dizer isso em Tribunal, não pode?
E foi nesse dia que a verdadeira história se soube e as peças do puzzle se juntaram. Uns dias depois, relatos afirmam tê-las visto juntas a almoçar, sorridentes, e de mãos dadas debaixo da mesa.
O que tinha acontecido, afinal? A ex namorada tinha-lhe destruído o carro? Não. Mais rebuscado: a morrer de ciúmes de uma nova amiga, a namorada acabou tudo. Depois, arrependida, tentou reatar. Como não conseguiu, começou a fazer tudo o que podia para chamar a atenção do amor da sua vida.
A carrinha? Nunca tinha sido destruída, daí não haver registos fotográficos.
O orçamento? A oficina apresentou um orçamento para um hipotético arranjo que nunca se efectuou.
A testemunha? Era uma amiga que, sem saber bem o que fazer, aceitou participar naquela história rebuscada de amor.
Não houve qualquer carrinha com líquidos corrosivos derramados. O único líquido derramado nesta história foram lágrimas. Muitas lágrimas. Que, segundo os mais recentes relatos, já estavam totalmente secas.
A paixão pode ser violenta. E corrosiva.
Se está história é real é do mais rebuscado que já li...este mundo anda perdido e cheio de ideias malucas!
ResponderEliminarRecambulesco mas comovente. E cheira a história real.
ResponderEliminarO M. Night Shyamalan bem podia fazer um filme deste plot.
Será que tanta paixão também vai corroer a sentença? ;)
ResponderEliminarÉ de facto uma bela (hi)estória de amor, pois o amor tem várias formas de se manifestar. Quem sabe esta história não tem ainda desenvolvimentos? Vai-nos pondo a par!!! R.