terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Não se ama alguém que não come o mesmo prato

Aquela cara começava a ser familiar. Semana após semana, cruzavam-se ao entrar no comboio. Ela tinha ficado hipnotizada por aqueles olhos que tinham em si toda a luz do dia, da cor do céu. Já se arrastavam para entrar na carruagem, de cada vez que se viam, para prolongar aqueles curtos momentos. Por duas vezes tiveram que ser praticamente arrastados pelo segurança para entrar.
Um dia, sentaram-se lado a lado. Ela ia nervosa, sentia o coração a bater a 200 na garganta, parecia que ia explodir. A propósito de um nada qualquer que naquele momento pareceu inadiável, ele meteu conversa e começaram a falar. Ou melhor, ela falava e ele ouvia. Ouvia tudo, com olhar atento, acenava com a cabeça, sorria com as histórias e fazia perguntas no fim.
Semana após semana, lá se iam sentando lado a lado. Ele lembrava-se das conversas todas passadas, perguntava-lhe pelo trabalho, pela família e ela sentia-se especial. Aquele banco da carruagem X, parecia-lhe o lugar mais acolhedor do mundo.
Semana após semana, depois de sair daquele comboio, já só pensava no dia em que se sentariam novamente lado a lado. Até que recebeu uma mensagem - "queres almoçar?". Queria, claro que queria.
Chegaram, sentaram-se lado a lado. Já não sabiam sentar-se de outra forma. Ela tinha insistido para irem àquele japonês óptimo e barato. Ele comentou "não sei usar os pauzinhos, tens que me ensinar, ok? É que nunca comi sushi". "Hmm... quer ser ensinado. Adoro ensinar", pensou ela, com alguma malícia.
Sentados lado a lado, ela ensinou-lhe tudo. Ensinou como se colocavam os dedos, como se deviam mover os pauzinhos - 'hashi' -, o que era o sushi e o sashimi, o nome de cada peça, o que era o gengibre e o wasabi, o que era aquele molho. Ensinou tudo o que sabia. Ele sempre a ouvi-la, atentamente, com aqueles olhos cor do mar. Ela adorou aquele almoço. Tinham que repetir.
No segundo almoço, ela, entusiasmada, quis conhecer novo japonês - "ainda é melhor e mais barato!", prometeu. Lá foram. Sentados, lado a lado, ela queria que ele praticasse novamente. Zero. Ele estava a zero. Mas ela repetiu tudo. Como se colocavam os dedos, como se deviam mover os hashi,... Já não adorou tanto aquele almoço, apesar de ele continuar tão querido e atento, e a olhar com aqueles olhos claros. Mas queria repetir.
O terceiro almoço foi igual. Passou mais rápido, porque ela tinha "um trabalho importante para terminar".
No quarto almoço, foi a vez dele falar num japonês "bem jeitoso". Lá foram. Sentados, lado a lado, ela assistiu outra vez, já sem forças, ao esforço dele para pegar nos hashi, novamente sem sucesso. "Vou pedir talheres, ok? Mas conta lá, estavas a falar daquela vez que..." Ela já nem queria falar. Talheres?! Desistia assim?? "Confesso que não sou grande fã de sushi", segredou-lhe ele. Ela só conseguia ouvir o Rui Veloso na cabeça, em modo repeat - "não se ama alguém que não ouve a mesma canção".
Nesse momento soube que nunca o ia amar.
Não se ama alguém que não come o mesmo prato, decidiu.
E lá o esqueceu. De que cor eram os olhos dele, já agora? Bem, agora já não interessa nada.

6 comentários:

  1. Nisto tudo só me dá para perguntar: mas porque raio é que tinham que ir ao sushi todas as vezes? Há mais restaurantes e mais variedade para experimentar, não? :P

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    1. Também perguntei o mesmo. Ela sugeria e ele aceitava, pelos vistos, dizendo que queria aprender mais sobre isso tipo de cozinha. Era suposto ser a 'cena' deles. Infelizmente, correu mal. ;)

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  2. Correu mal porque não houve click, senão não havia shushi que acabasse com "aqueles" olhos azuis. Não há coincidências, não tinha de ser.
    Imagina no primeiro encontro ir comer Pitta Shoarma, com molho de alho a sair por todos os lados, e o cheiro depois sem lavar os dentes... mas pensando bem, agora que estou a recordar isto devia ter percebido logo... durou "apenas" 14 anos... talvez tenhas razão... aquilo devia ter sido um sinal de alarme na minha cabeça...

    Já me fizestes pensar...

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  3. É uma desilusão, mas ao menos acabou antes de começar, podia ter sido pior :p

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  4. Se não houve click, não houve click; mas ir quatro vezes ao mesmo tipo de restaurante, comer algo que não se gosta, só pela companhia da miúda, diria que é merecedor de mais uma oportunidade, de preferência noutro registo!

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