terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A minha senhoria

Vi o anúncio. A casa parecia impecável, muito bem localizada, num dos meus bairros preferidos, e a um preço acessível. Escrevi-lhe.
No email de resposta, a senhora tinha tido até o cuidado de colocar um vídeo com uma fotografia dela, para que pudesse saber com o que contava. Marquei uma visita e lá fui eu.
Quando cheguei, deparei-me com uma senhora que me pareceu ter, mais ou menos, 234 anos. Só com alguns dentes, cabelo branco comprido, preso por um elástico, roupa larga demais para o seu corpo, demasiado grossa para a temperatura exterior e já sem formas. Nos pés, uma unha malandra a espreitar através da meia. Fiquei assustada. Seria aquela velha uma bruxa que tinha assassinado brutalmente a simpática senhora do anúncio?
- Dona X?...
- Sim, sou eu.
- Ahh... hmmm... olá...
- Olá!! Muito prazer!!
E atirou-se prontamente à minha cara, em busca dum beijo. Não sou pessoa de negar beijos, mas aquele hálito a café misturado com 4 maços de tabaco fez-me confusão.
Vi a casa. Era tal e qual o anúncio. O preço era óptimo. A localização era realmente a ideal. Com um terraço, cheia de luz. "E pode trazer a cadela! Adoro animais". Palavras vencedoras. Lá fiquei com a casa. "Vou ficar com a casa, não com a velha", pensei em clara auto-motivação.
Acontece que descobri mais tarde que a "bruxa" tinha afinal 50 e tal anos e era das pessoas mais cultas que já conheci. Vítima dum acidente de trabalho, quando trabalhava no Ministério da Cultura, partiu uma perna e nunca mais pôde trabalhar. Como já não ia para nova, andava a tentar que lhe dessem a reforma. E o cabelo por pintar, as roupas velhas e a ausência de placa dentária faziam parte do "esquema". Vi fotos dela com um ano de diferença e realmente parecia 180 anos mais nova. Não a pude criticar.
Adorava falar de política, das conversas que tinha com o "Pedrinho"e das histórias que viveu no Ministério. Fomos ficando amigas. E eu adorava chegar a casa de rastos, do trabalho, jantar, ligar o "piloto automático" e ficar apenas a ouvi-la. Até à 1h da manhã. Altura em que me retirava.
- Dona X, até amanhã.
- Até amanhã! Eu vou só tomar um cafezinho, que estou a precisar dum.
- Olhe que assim não dorme!
- Eu nunca tenho sono à noite, não sei porquê.
- Hmmm... Será do café?
- Como?
- Nada, nada. Olhe, durma bem! Boa noite.
- Por este andar, já será só bom dia. Estou mesmo com pouco sono, não sei porquê, dizia-me, enquanto bebericava o seu café em frente à Sic Notícias, e jogava Farmville no computador.

10 comentários:

  1. Definitivamente as aparências iludem!

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    1. Sim. Revelou ser uma mulher fora de série. :)

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  2. Sem a conhecer, fiquei a gostar da tua senhoria.

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  3. As aparências iludem.

    homem sem blogue
    homemsemblogue.blogspot.pt

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  4. mariana15:52

    Como diz a minha avó: as iludências aparudem ;-)

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