quinta-feira, 9 de maio de 2013

Saiu dum romance do Eça, não achas?

Todos aqueles que leram "Os Mais", de Eça de Queirós, se lembram dele: Dâmaso Salcede. O Dâmaso representava o Português rural que decide abandonar a terra em que vive, rumar para a metrópole e tornar-se mais urbano que a própria cidade. Quer ser alguém como os seus ídolos cheios de pinta e poder que cresceu a idolatrar. Quer ser "chic a valer", como repete. Com uma vida totalmente chic, com programas chic, em sítios chic, rodeado de pessoas chic. É convencido, arrogante e representa o novo-riquismo e os vícios de Lisboa naquela época. O Dâmaso é baixinho, tem excesso de peso (talvez por comer demasiadas coisas chic), mas tem proporcionalmente excesso de auto-estima e carência de carácter. Deseja ser alguém, arranjar um bom emprego e viver sem dificuldades, nem que para isso tenha que passar por cima de alguém.

Depois havia também o Euzebiozinho. Representava a educação tradicional Portuguesa: superprotegido pela mãe, abafado em roupas, cresceu a decorar poemas, o catequismo e a Cartilha, e ainda estudou Latim. A consequência foi tornar-se um adulto melancólico, sisudo e triste. Fisicamente era descrito como tísico. Tornou-se um adulto corrupto, como o Dâmaso.

E estas personagens vêm a propósito duma conversa que tive ontem com uma amiga. Falávamos sobre o facto de Eça estar bastante à frente do seu tempo. Quantos Dâmasos ou Euzebiozinhos conhecemos ainda? Quem não conhece aquele "Dâmaso" que decide estudar na cidade, vindo duma terra mais pequena, e que deseja ardentemente ser "alguém"? Muitas vezes começam logo na faculdade: fazem parte da associação, são membros activos, apelam-nos ao voto. Depois, transitam para a política. O perfil mantém-se. Ligam-nos apenas a pedir um voto. Marcam café somente para nos apresentar as vantagens de entrarmos no partido. Enchem-nos a caixa de email com as propostas eleitorais. De repente, começam a aprimorar o vestuário. Por vezes deixam crescer alguma pelugem facial, para demonstrar a maturidade. Encontramo-los em bons sítios a jantar. Perguntamos pelo trabalho. Percebemos que apenas vivem daquilo. E que esperam o dia em que alguém o convide para integrar a sua empresa. Não têm pudor em assumir que procuram um "tacho".

Quem não conhece aquele "Euzebiozinho" enfezado, super ligado aos pais, frágil e com ar melancólico, que acaba por se tornar também um adulto corrupto, sem problemas em aceitar alguma compensação financeira em troca de um favor?

Ontem discutíamos isto e acabámos a rir a pensar que os piores serão mesmo os "híbridos": aqueles com características dos dois. Ora façam lá um esforço e vejam se não conhecem tantos assim. Acho que é por isto que sempre adorei o Eça. 

8 comentários:

  1. Também sempre adorei o Eça. Talvez seja por isso mesmo... Conhece mesmo pessoas assim, credo!
    O Eça estava mesmo à frente do seu tempo. Soubessem as pessoas e corriam essa gente à paulada =P

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  3. Anónimo14:17

    Fujo a sete pés de gente assim!
    Carla Nunes

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  4. Adoro o Eça ..é duma actualidade desarmante, acabei de reler os Maias ( pois a minha filha mais velha estava a ler para Português e resolvi fazer-lhe companhia), quantos Dâmasos Salcede não há por ai...e no Governo consigo identificar uns tantos ( e no anterior nem falo)...enfim este pais muda pouco ! beijos

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  5. Edaurdo16:28

    o Eça de Queiroz não estava a frente do seu tempo, porque no seu tempo havia estas personagens.. ou seja, ele fazia um retrato da sociedade do eu tempo. o drama é estas figuras ainda existirem. no fundo, nós é que estamos atrás do nosso tempo.

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  6. Ai que gargalhada!! Acabei de visualizar um Dâmaso igualzinho a esse que descreves, até deixou crescer pelos no peito e tudo! :D

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  7. O Eça foi, é e será sempre o melhor escritor do universo. Estou cheia de pena de não ter ido a Tormes no fim-de-semana passado. Fica para o Verão.

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