quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A perfeição cansa

Passaram-se anos.
Sentavam-se lado a lado nas aulas. Trocavam sorrisos discretos perante qualquer piada do professor.
Caminhavam juntos até à porta da sala, no final das aulas. Por vezes, caminhavam também juntos até ao carro.
Até que começaram a ter imensas dúvidas com a matéria. Cada vez era mais difícil! E tinham que conversar muito até as dúvidas se dispersarem.
Mas as malditas das dúvidas podiam ser atenuadas, mas teimavam em aparecer novamente. Tinham mesmo que conversar tanto, tanto...
Um dia aperceberam-se que as dúvidas não eram totalmente exterminadas, porque falavam de tudo menos da matéria. Mas nunca o admitiram em voz alta. Falavam das férias, da família, da infância de cada um, dos hobbies. E as histórias iam dando lugar a novas histórias. Começavam a falar a meio da tarde e, quando se apercebiam, já tinha passado a hora de jantar.
"É noite, já reparaste?", e sorriam. O tempo assim voava tanto!
Sentavam-se, portanto, lado a lado nas aulas. E, quando ele estava atento, ela distraía-se com os braços dele. E com a pele morena. Com as costas largas. O olhar ia vagueando. E os pensamentos também. Perdia-se com aquelas linhas definidas que espreitavam debaixo das camisas dele. "Concentra-te. Concentra-te. Estás nas aulas, por amor de Deus. Não estás num filme erótico, nem ele se vai despir. Ganha juízo", repetia para si mesma. "Hmmm.... Mas aposto que ele tem um six-pack perfeito... Não, concentra-te. Concentra-te."
E quando ela se concentrava e desatava a tirar apontamentos desenfreadamente, era a vez de ele se perder com o perfume dela. Com aquela voz a sussurrar que ela fazia. Com o sorriso maroto que lhe saía de vez em quando.
Um dia, tantas eram as dúvidas que tiveram que ir até casa dela estudar.
- Trrrim.
- Entra.
- Trouxe os exames do ano passado. Já os fiz, posso mostrar-te a minha resolução.
- Óptimo. Não admira que sejas o melhor aluno.
- Ohh não sou nada. Se estudares tens as mesmas notas que eu.
- Só gostava de saber como é que ainda tens tempo para praticar desporto de competição.
- É uma questão de me organizar.
- E ainda consegues sair e descansar?
- Claro... e estar com a família. Surfar. Viajar.
"És tão perfeito. Essa cara... Um corpo perfeito. Aluno aplicado. Sempre impecável, educado. Nem pareces real. Meu Deus!!", pensava. Sim, ele punha-a muito religiosa.
Falaram horas e horas e horas. Ela já nem se conseguia concentrar.
"Beija-me, beija-me, beija-me", pensava.
Ele continuava a falar.
Agarra-me e cala-te. Já." - ela não parava de dar ordens telepáticas.
Mas não se beijaram nesse dia. Nem no outro. Passaram dois meses. Ela já trepava paredes. Até que, um dia, ele também não aguentou mais:
- Gosto de ti. Posso beijar-te?
- Não perguntes. Faz o que queres!!!, disse ela a sorrir.
Ele fez.
- Posso beijar o teu pescoço? Com licença, perguntou com gentileza e educação. É bom assim?
Ela ficou quieta. Não se deu o "click!". Não ficou arrepiada. N-a-d-a. Não sentiu nada.
- Olha, temos que estudar.
Há perfeições que só funcionam em pensamentos. E sem ela o conseguir explicar, aqueles meses de amor louco platónico tinham sido suficientes. A realidade nunca iria ultrapassar a perfeição dos seus pensamentos.
Além disso, aquela educação ao vivo afinal cansava-a. Ai, se ele soubesse como era tão melhor nos sonhos dela!

11 comentários:

  1. Agora sim, tenho uma explicação para o meu insucesso com raparigas na adolescência.
    Perfeição demais. Cof, cof!

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  2. Ahah, ouch! A desilusão.

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  3. Lol, o amor platónico é lixado! E a falta de click também! No way! :p

    Http://coisasquetaiseafins.blogspot.pt

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    1. Muito. E depois raramente a realidade corresponde. ;)

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  4. há histórias que só funcionam na nossa cabeça!

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    1. Sim. Depois ao vivo e a cores... esquece...

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  5. Por vezes só funciona mesmo na nossa cabeça ou nos sonhos...

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  6. Anónimo00:01

    Mais um óptimo texto, muito bem escrito e com o teu cunho especial! Beijinho

    A tua homónima! ;)

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